LIKI, Cap. 19
Yochi – Da Música
1. Origem e função da Música
A Música brota do coração humano quando ele é tocado pelo mundo exterior. Sob o impacto do mundo exterior, o coração emociona-se e então se expressa por sons. Tais sons ecoam ou combinam-se a outros, afinal produzindo uma riquíssima variedade e quando os vários sons se tornam regulares, tem-se o ritmo. A distribuição dos sons para diversão nossa, em combinação com a dança militar (com achas e escudos) e a dança civil (com longas plumas e caudas de raposas), denomina-se música.
Música é a forma segundo a qual se produzem os sons, que brotam do coração humano quando tocado pelo mundo exterior. Assim, quando nêle é tocada a fibra da tristeza, são amargos e tristes os sons produzidos; quando é tocada a fibra da satisfação, são langorosos e lentos os sons produzidos; quando é tocada a fibra da alegria, são brilhantes e expansivos os sons produzidos; quando é tocada a fibra da ira, são ásperos e duros os sons produzidos; quando é tocada a fibra da piedade, são simples e claros os sons produzidos; quando é tocada a fibra do amor, são gentis e doces os sons produzidos. Estas seis espécies de emoção não são normais: são estados produzidos pelo toque do mundo exterior.
Por isso os reis da Antigüidade preocupavam-se com as coisas capazes de afetar o coração humano: assim buscavam êles orientar os ideais e as aspirações do povo por meio da li, estabelecer a harmonia dos sons por meio da música, regular a conduta social por meio do bom govêrno, e evitar a imoralidade por meio do castigo. Li, música, e castigo, bem como o govêrno, têm um objetivo comum - promover o equilíbrio nos corações humanos e realizar os princípios da ordem política.
A música brota do coração humano. Quando suscitadas, as emoções exprimem-se por sons, os quais, ao assumirem forma definida, constituem a música. Por isso a música de uma nação próspera e feliz é traqüila e alegre, e o govêrno é ordeiro; a música de uma nação atrapalhada manifesta insatisfação e raiva, e o govêrno é caótico; e a música de uma nação destruída mostra apenas tristeza e saudade do passado, e o povo é infeliz. Eis como sempre encontramos govêrno e música em estreita relação.
A clave de C (Dó) simboliza o rei; a clave de D (Ré) simboliza o ministro; a clave de E (Mi) simboliza o povo; a clave de G (Sol) simboliza os negócios do país; a clave de A (Lá) simboliza a natureza[xiv]. Quando se harmonizam as cinco claves, não há sons discrepantes. Quando desafina a clave de C. a música perde o seu fundamento e o rei descura os próprios afazeres; quando desafina a clave de D, a música perde a sua gradação e os ministros prevaricam; quando desafina a clave de E, a música é triste e o povo sente-se desgraçado; quando desafina a clave de G, a música é fúnebre e os negócios do país complicam-se; quando desafina a clave de A, a música sugere perigo e o povo passa miséria. Quando tôdas as claves desafinam e se confundem, generaliza-se a discórdia e pouco mais viverá a nação.
A música dos Estados de Cheng e Wei é a música dos países em confusão. quase chegando à discórdia geral. A melodia de No campo das amoras, das margens do Rio p'u (em Wei), é música de nação destruída, cujo govêrno titubeia e cujo povo se desgarra ou vive em permanente insegurança, a caluniar os governantes e cada qual a buscar vantagens pessoais sem nenhum escrúpulo.
As notas musicais brotam do coração humano, e a música está em relação com os princípios da conduta humana. Por isso os animais conhecem os sons mas não sabem as notas, e a plebe conhece as notas mas não sabe música. Só o homem superior é capaz de entender música. Assim, do estudo dos sons chega-se à compreensão das notas musicais; do estudo das notas musicais, chega-se à compreensão da música; e do estudo da música chega-se à compreensão dos princípios de govêrno e fica-se preparado para governar. Portanto é impossível falar de nas musicais a uma pessoa que não identifique os sons, impossível falar de música a uma pessoa que não saiba as notas musicais. Aquêle que compreende a música acha-se muito perto de compreender a li, e ao homem que domine a li e a música podemos chamar virtuoso - porque virtude é domínio.
Daí que o dizer-se a música é bem cultivada em determinado país não significa ser a sua música elaborada ou complexa, nem que as suas festas e cerimônias revistam-se de gostos complicados. Quando no templo ancestral Chou ouvimos a música do seh, com suas cordas vermelhas e sua caixa perfurada, e apenas um homem cantando e três fazendo o coro, sentimos certa contenção nas melodias; e quando assistimos às cerimônias da festa real, com vinho escuro e peixe cru e caldo insulso, sentimos certa contenção no uso do tempêro. Os antigos reis, portanto, não instituíram os rituais e a música apenas para o fim de satisfazer aos nossos sentidos ("bôca. estômago, ouvido e ôlho") e sim para incutir no povo o bom gôsto e o apêgo à normalidade.
A natureza do homem é geralmente tranqüila, mas principia a ter desejos quando afetada pelo mundo exterior. Com o dom de pensar a mente torna-se consciente do impacto do mundo material, gerando em nós simpatias e antipatias. Quando as simpatias e antipatias não são devidamente controladas e a consciência se deixa seduzir pelo mundo material, perdemos o nosso eu autêntico e anula-se em nós a razão da Natureza. Quando o homem se expõe constantemente às coisas do mundo material que o afetam, e não controla suas simpatias e antipatias, empolga-o a realidade material e êle se torna materialista ou desumano; quando um homem se torna materialista ou desumano, anula-se o princípio de razão da Natureza e a criatura cede aos apetites - daí a rebeldia, a desobediência, a esperteza e a tapeação, a imoralidade geral. Dá-se então o espetáculo dos poderosos a aviltar os fracos, a maioria a perseguir a minoria, os espertos a enganar os de boa-fé, os fisicamente fortes dando largas à violência, os mutilados e enfermos sem ter quem os assista, os velhos e as crianças e os inválidos ao desamparo. É o caminho do caos.
Controlam-se os cidadãos por meio da música e dos rituais, instituídos pelos reis antigos. O pranto e a lamentação, e a ostentação dos trajes de luto feitos de cânhamo e sem bainhas, têm por fim conter o sofrimento nos funerais; o gongo, o tambor, a acha e o escudo (na música e dança) têm por fim celebrar a felicidade e a paz; a cerimônia do casamento, a "investidura" dos rapazes com o "boné" e das donzelas com a "coifa” ao atingirem a maioridade, têm por fim realçar a distinção entre os sexos; os certames de arco e flecha e os festejos urbanos têm por fim normalizar as relações sociais. Os rituais regulam os sentimentos do povo, o govêrno ordena-lhe a conduta e os castigos previnem os crimes. Quando os ritos, a música, os castigos e o govêrno vão todos em bom andamento, completam-se então os princípios da ordem política.
2. Paralelo entre a Música e Ritual, com fundamento na Harmonia com a Ordem Cósmica
A música une, o ritual distingue. Pela união as pessoas tornam-se amigas. pela distinção aprendem a respeitar-se. Se predomina a música, a estrutura social tende a tornar-se amorfa; se o ritual predomina, a vida social tende a tornar-se demasiado fria.
A música e aos rituais cabe manter em equilíbrio os sentimentos e a conduta do povo. A instituição dos rituais propicia uma noção bem clara de ordem e disciplina, enquanto a divulgação da música e dos cantares suscita uma atmosfera popular de paz. Quando o bom gosto afasta-se do mau gosto, têm-se meios de distinguir a gente boa da gente má; e quando a violência é prevista nas leis penais e os bons cidadãos são colhidos para o serviço público. então o govêrno torna-se ordeiro e estável. Com a doutrina do amor para ministrar afeto, e a doutrina do dever para ministrar retidão, o povo aprenderá a viver moralmente.
A música vem do íntimo, ao passo que os rituais vêm de fora. Por vir do íntimo, a música é espontânea e calma. Por virem de fora, os rituais caracterizam-se pelo seu formalismo. A música verdadeiramente sublime é sempre simples nos seus movimentos, e os rituais verdadeiramente sublimes são sempre singelos na sua forma. Quando prevalece a boa música não há sentimento de inquietação, e quando prevalece o ritual adequado não há rixas nem lutas. Ao dizer-se que pela simples maneira de curvar-se em saudação pode o rei governar o mundo, vai nisso uma referência ao poder da música e dos rituais. Quando os elementos de violência de um país são mantidos quietos, os vários governantes vêm render-lhe homenagens, ensarilham-se as armas de guerra, as cinco leis penais não são postas em uso, o povo não tem receios e o imperador não tem ira - então é que prevaleceu a música; quando pais e filhos têm afeição recíproca, os mais jovens respeitam os mais velhos e tal respeito estende-se a todos os cidadãos, e o próprio imperador vive uma vida exemplar, pode-se então dizer que a li prevaleceu.
A grande música compartilha dos princípios harmonizadores do universo, e o grande ritual compartilha dos princípios diferenciadores do universo. Através dos princípios de harmonia, restaura-se a ordem no mundo físico; e através dos princípios de diferenciação, afinal, podemos oferecer sacrifícios ao Céu e à Terra. Temos portanto ritual e música no mundo material, e as divindades várias no mundo espiritual - e assim viverá o mundo com respeito e amor. Os rituais incutem o respeito em diversas circunstâncias, e a música incute o amor sob diversas formas. Quando semelhante condição moral se estabelece mediante os rituais e a música, tem-se a continuidade da cultura pela ascensão de governantes sábios. Os acontecimentos políticos diferem com (os governantes de) as gerações diferentes, e os rituais e a música para a celebração dos acontecimentos recebem denominações adequadas às várias realizações dos governantes.
A música expressa a harmonia do universo, enquanto que os rituais expressam a ordem do universo. A harmonia põe em comunhão tôdas as coisas e a ordem põe cada coisa em seu lugar. A música provém do céu, os rituais padronizam-se na terra; transgredir êsses padrões resultará em desordem e violência. Para têrmos a música e os rituais adequados, havemos de compreender necessariamente os princípios do Céu e da Terra.
Eis por que o Sábio cria a música para atender ao Céu e traça os rituais para atender à Terra. Quando música e rituais se estabelecem, temos o Céu e a Terra a funcionar em perfeita ordem. O Céu fica no alto e a Terra fica embaixo, e nessa mesma relação devem ficar o rei e os ministros. Quando o mais alto e o mais baixo se distribuem em diferentes níveis, temos o princípio das castas sociais. Quando a lei rege ação e reação, temos em resultado as relações entre grandes e pequenos. E quando os miríades de coisas classificam-se e grupam-se conforme sua natureza. reconhecemos o princípio da diversificação no mundo. Assim se formam de estréIas as constelações simbólicas no céu, e os caprichosos desenhos das montanhas e rios e coisas na terra - tudo isso demonstrando que a li atua segundo o princípio diversificador do universo.
Quando sobem os vapôres da superfície terrestre e descem os vapôres das camadas superiores da atmosfera, quando os princípios yin e yang encontram-se, atritam-se, e o céu e a terra agem um sôbre o outro; e quando, aceleradas pelo trovão e o relâmpago, vivificadas pelo vento e pela chuva, estimuladas pela seqüência das estações do ano, aquecidas pelo sol e pela lua, as coisas crescem e se desenvolvem - tudo isso demonstra que a música atua segundo o princípio harmonizador do universo.
A música encarna as fôrças primordiais da natureza, ao passo que a li reflete a criação. O Céu representa o princípio do eterno movimento, ao passo que a Terra representa o princípio da permanente quietude - e êsses dois princípios, o do movimento e o do repouso - penetram tôda a vida entre o Céu e a Terra. Eis por que o Sábio fala de música e rituais.
3. A música revela o Caráter do homem
Quando virdes o tipo de dança de uma nação, conhecer-Ihe-eis o caráter...
O homem é dotado de sangue e alento e consciência, mas a tristeza ou felicidade, ou alegria ou ira, êle sente conforme as circunstâncias; seus formulados desejos resultam de reações diante do mundo material. Portanto, quando predomina um tipo de música sombria e depressiva, sabe-se que o povo é triste e desgraçado; quando predomina um tipo de música langorosa, fácil, com árias prolongadas, sabe-se que o povo é feliz e pacífico; quando predomina um tipo de música forte e vigorosa, começando e acabando com exuberância de sons, sabe-se que o povo é voluntarioso e forte; quando predomina um tipo de música pura, piedosa e magnificente, sabe-se que o povo é afetuoso e cordial; quando predomina um tipo de música lasciva, excitante e lúbrica, sabe-se que o povo é imoral.
Quando a gleba é pobre os sêres não crescem, e quando a pesca não é controlada conforme as estações do ano os peixes não chegam a desenvolver-se; quando o clima se estraga, degeneram as plantas e os animais, e quando o mundo é caótico a música e os rituais tornam-se licenciosos, e então encontra-se um tipo de música lamentosa sem contenção e alegre sem tranqüilidade.
Por isso o homem superior procura instaurar a harmonia no coração humano através do descobrimento da sua natureza e procura fazer da música um meio de levá-lo à perfeição da sua cultura. Quando predomina êsse tipo de música e o espírito do povo é orientado para os justos ideais e aspirações, pode-se perceber o advento de uma grande nação.
O caráter é a espinha dorsal da natuteza humana, e a música é a inflorescência do caráter. Os instrumentos de metal, pedra, corda e bambu são meros instrumentos da música. Pelo poema fala o coração. pelo canto expressa-se a nossa voz, e a dança expressa os nossos movimentos. Estas três artes brotam da alma humana, e adquirem outras expressões mediante os instrumentos de música. Portanto, da profundidade do sentimento provém a clareza formal, e do poder sugestivo da melodia provém a espiritualidade da atmosfera então criada. Essa harmonia cresce da alma e encontra sua expressão florescente em forma de música. Por isso a música é a única coisa que não se presta a enganar as pessoas ou a insinuar falsas intenções...
4. Música Antigas e de Hoje
O Barão Wen, de Wei, perguntou a Tsehsia, discípulo de Confúcio: "Por que é que me dá sono sempre que ouço música antiga, metido em meus trajes oficiais, e nunca me sinto cansado quando ouço a música de Cheng e de Wei? Por que a música clássica é assim, e a outra não o é?"
Tsehsia respondeu: - "Na música antiga. os dançarinos movem-se em formação, para diante e para trás, numa atmosfera de paz e ordem, com certa luxúria de movimentos. O hsuan (instrumento de cordas), a cabaça, e o sheng (espécie de gaita de bôca feita de tubos de bambu), mantêm-se prontos e à espera, até que o tambor dá o sinal do início. A música principia com os movimentos da dança civil e termina com os da dança militar, havendo uma continuidade de movimentos do comêço ao fim[xv], enquanto o próprio compasso contém ou orienta os dançarinos inclinados a atuar com demasiada rapidez. Depois de ouvir tal música, o homem superior há de encontrar-se num estado de ânimo propício à discussão de costumes e gostos dos antepassados, sôbre o aprimoramento do indivíduo e a regularização da vida nacional: eis a principal característica da música clássica. Na música moderna, as pessoas curvam os corpos enquanto vão para a frente e para trás, há um dilúvio de sons imorais sem contenção nem forma, e os atôres e os anões, vestidos como macacos, misturam-se com os homens e as mulheres presentes, como se não conhecessem os próprios pais e filhos. Depois dêsse espetáculo é impossível discutir sôbre gostos e hábitos dos antigos: eis a principal característica da música nova. Afinal, vindes argüir-me a respeito de música, mas o que realmente vos interessa não passa de ruídos. Ruído e música têm algo em comum, sem dúvida, mas são coisas inteiramente diversas."
- "Que quereis dizer?" - insistiu o Barão Wen.
Tsehsia prosseguiu:
- "Nos velhos tempos as fôrças da natureza estavam em harmonia e o clima variava de acôrdo com as quatro estações; os cidadãos demonstravam bom caráter e as colheitas eram .abundantes; não se verificavam epidemias, não se viam monstros nem maus augúrios. Era o tempo em que tudo ia bem. Surgiram então os Sábios (ou sacerdotes) estabeleceram a disciplina social para as relações entre os pais e os filhos, entre os reis e seus ministros. Com a instauração da disciplina social a vida entrou em ordem, e com a vida em ordem os Sábios estabeleceram os diapasões corretos para os seis tubos da gaita[xvi] e as cinco claves musicais. O povo começou então a cantar solos e coros com acompanhamento de hsuan (instrumento de cordas) e essa ficou sendo a música sagrada (literalmente: "sons virtuosos"), e sagrada era tôda a música. Mas o que realmente vos interessa não é mais do que uma mixórdia de sons lúbricos."
- "Posso perguntar de onde provêm os sons lúbricos?" - tornou o barão.
- "A música de Cheng é lúbrica e corrompe, a música de Sung é mole e torna o homem afeminado, a música de Wei é monótona e aborrece, e a música de Ch'i é áspera e torna o homem insolente. Estes quatro tipos de música são sensuais e minam o caráter do povo, por isso não se devem usar por ocasião dos sacrifícios religiosos. Diz o Livro dos Cantares - "Os sons harmoniosos são shu e yung. e meus antepassados os escutavam." Shu quer dizer "pio" e yung quer dizer "pacifico". Se tendes piedade e paz como traços de caráter, podereis fazer de uma nação o que quiserdes."
Tsehsia continuou a falar:
- "Tudo o que um rei tem a fazer é ver bem as coisas de que gosta ou não gosta. O que agradar ao rei, o povo o fará; no que fizer o rei, o povo o imitará. Tal é o sentido daquela passagem do Livro dos Cantares, que diz - "É muito fácil guiar o povo."
Assim pensando, os Sábios (ou sacerdotes) fizeram os instrumentos de música: o yao (tamborim com duas bolotas suspensas a um e outro lado da baqueta, bolotas essas que o percutiam quando se fazia rolar a baquêta entre as palmas das mãos), o surdo, o k'ung e o ch'ia (tambores quadrados, de madeira, com os tampos abertos no centro), o hsuan e o ch'ih (variedades de instrumentos de sopro, sendo o hsuan uma espécie de pote de barro com seis furos e o ch'ih uma espécie de "flauta de Pã", feita de vários tubos de bambu, cada qual com sua embocadura). Estes seis instrumentos produzem os sons usados na música sacra. Além deles, há os sinos ou guizos. O ch'ing (lâmina de pedra suspensa num estojo) , o yu (espécie de fole com 36 embocaduras), e o seh (longo instrumento horizontal com cinqüenta-cordas); e há também a dança com achas e escudos (dança militar) ou com rabos de boi e penas de faisão (dança civil). Tal é a música usada no culto aos antigos reis e nas libações: é a espécie de música mediante a qual se incutiu uma noção de ordem social entre as diversas castas e o senso de disciplina entre mais velhos e mais jovens, entre superiores e subalternos, através das gerações subseqüentes.
O som do sino é claro e ressonante; sua claridade e ressonância fazem-no especialmente indicado para marcar os sinais, sinais êsses que dão uma impressão de majestade. e essa impressão de majestade inspira um sentimento de poderio militar. Por isto, quando o soberano escuta o sino. pensa em suas patentes militares. O som da pedra musical é agudo e nítido; sua agudeza e nitidez tendem a incrementar o senso de decisão, e o senso de decisão torna mais fácil para os generais a morte em combate. Por isto, quando o soberano escuta a pedra musical, pensa em seus súditos militares mortos nas frentes de batalha. O som das cordas é queixoso e o seu queixume clareia a alma, e a clareza de espírito induz ao senso de retidão. Por isto, quando o soberano escuta o som de instrumentos de corda, o ch'in e o seh (ambos horizontais, de cordas esticadas sôbre uma caixa horizontal), pensa êle em seus ministros corretos. O som do bambu (semelhante ao dos instrumentos de sôpro de madeira, no Ocidente) é líquido, e essa qualidade tende a espalhar-se por tôda parte e a unir as massas populares. Por isto, quando o soberano escuta o som dos instrumentos de bambu, pensa em seus vassalos das províncias. O som dos tambores grandes e pequenos é barulhento, qualidade essa que tende a despertar e excitar; a excitação leva as massas à ação. Por isto, quando o soberano ouve o som dos tambores, pensa em seus grandes soldados. Daí se conclui portanto que, ao escutar música, o soberano não ouve os ruídos apenas - o que êle percebe é a significação peculiar som.[xvii]
5. Confúcio e os vários movimentos da música de dança interpretativa do Imperador Wu
Pinmou Chia estava um dia conversando com Confúcio, e começaram a falar de música, Confúcio indagou: - “Por que é que, no início desta Dança de W u, os dançarinos ficam uma porção de tempo contendo-se, prontos, antes de atacarem, enquanto soam os tambores?"
- "Porque isto simboliza o fato de que o Imperador W u esperou muito tempo para lançar-se à conquista dos domínios do Imperador Shang (Chou, a quem êle depôs), até estar seguro da solidariedade dos demais governos" - respondeu Pinmou Chia,
- “E qual o sentido disso que os dançarinos cantam e suspiram, enquanto seus movimentos vão gradualmente ganhando intensidade?"
- "É que o Imperador Wu teve de suspirar pela solidariedade dos outros chefes."
- “E que sentido tem o bailado e o sapateado que iniciam a dança?"
- "Assinalam o comêço da campanha,"
- “E por que é que os dançarinos principiam então a agachar-se, a pôr-se de cócoras, com o joelho esquerdo erguido?"
- "Eles não deviam mesmo agachar-se durante a Dança de Wu."
- “E por que é que se faz ouvir a melodia característica dos Shangs (o inimigo)?"
- "Essa melodia também não pertence à música de Wu."
- “Pois que melodia é essa, sé não faz parte da música de Wu?"
- "Os mestres de música esqueceram sua significação primitiva...Se não se tratasse de uma interpolação (se fôsse realmente música de Wu), o Imperador Wu teria sido um rei cruel”.[xviii]
- "Ouvi de Ch'ang Hung (oficial da cidade de Chou) uma explicação em tudo semelhante à que me acabais de dar" - falou Confúcio.
Pinmou Chia ergueu-se do seu assento e disse: - "Todos nós compreendemos o sentido dessa longa espera preliminar; mas pergunto eu; por que a demora e lentidão dos dançarinos ao começarem, e por que dura tanto isso?”
Confúcio: "Sentai-vos, e eu vos direi. Esta música é uma interpretação simbólica dos acontecimentos históricos. Isso de os dançarinos ficarem em longas fileiras, com seus escudos, como sólida muralha (literalmente: "como uma montanha”) simboliza a atividade do Imperador Wu. Os dançarinos ao começarem a bater com os pés no chão, no inicio da dança, simbolizam o ânimo irrequieto e as ambições do Rei Tai, bisavó do Imperador. Pondo-se de cócoras ou agachados, os dançarinos simbolizam o govêrno pacífico dos Duques Chou e Shao (irmãos do Imperador Wu) que mais tarde auxiliaram seu filho a pacificar a nação e a instaurar o sistema governativo da Dinastia Chou, após a deposição da casa então reinante. Por outro lado, os dançarinos de Wu executam o primeiro movimento do sul para o norte (avançando rumo à segunda posição e assim representando a preparação do exército, segundo os comentaristas) . No segundo movimento, os Shangs são derrotados (passagem para a terceira posição, segundo os comentaristas). No terceiro movimento, os dançarinos voltam para o sul (assumindo a quarta posição). No quarto movimento é simbolizado o govêrno do Imperador Wu sôbre as regiões meridionais (tomando à segunda posição). No quinto movimento separam-se os dançarinos representando os da esquerda a atuação do Duque Chou, os da direita a atuação do Duque Shao (voltando à terceira posição). No sexto movimento os dançarinos retomam as posições iniciais, simbolizando assim a homenagem de tôda a nação ao seu novo Imperador.[xix] O avanço dos dançarinos em linha, com os tocadores de caixa de madeira ao lado dêles, e sua eclosão na dança das lanças em quatro direções (ou "repetindo quatro vêzes a dança das lanças", segundo outra interpretação), representam a expansão do poderio militar do Imperador Wu sôbre a China. O avanço em duas colunas paralelas, com os tocadores de caixas de madeira ao lado, exprime a vitória facilmente obtida. Sua longa espera, em formação, simboliza a espera pela chegada dos exércitos aliados.
Não ouvistes, além disso, a narração do que o Imperador Wu fêz nos arredores da capital derrotada? Quando o Imperador Wu derrotou os Shangs e chegou à capital dêles, nomeou os descendentes de Huangti (o Imperador Amarelo) governantes de Chi, nomeou os descendentes do Imperador Yao governantes de Chu, e nomeou governantes de Ch’ei os descendentes do Imperador Shun. Isto foi feito antes de terminar a campanha, e depois de acabada esta êle fêz governantes da outra Chi os descendentes do Imperador Yu, destituiu os descendentes dos Imperadores Shang e pô-los em Sung. Também concedeu nobreza póstuma ao Príncipe Pikan[xx], tirou Chitse da prisão e permitiu-lhe continuar vivendo segundo os hábitos dos Shangs, tendo-lhe antes restituído o grau nobiliárquico. Os cidadãos foram isentados do serviço militar e os cavaleiros tiveram duplicado o sôldo. Após cruzar o Rio Amarelo, para oeste, o Imperador Wu mandou soltar no pasto as alimárias do exército, ao sul dos Montes Hua, e não as fêz encilhar de novo, soltou os búfalos em liberdade, nas campinas de Pessegueiros, e não os prendeu mais; recolheu ao Arsenal do Império as carretas e armaduras manchadas de sangue e não as repôs em uso; os escudos e as lanças levaram-se com as pontas para trás, sendo tudo enrolado em couros de tigre, e os generais foram feitos administradores de cidades. A isto se deu o nome de desarmamento (literalmente: "fechar alijavas”), e a todo o mundo se fêz saber que o Imperador Wu não voltaria a empregar as armas de guerra. O exército foi dispersado e os soldados foram dedicar-se aos jogos de armas, pelos arredores. No subúrbio oriental, o cerimonial dos certames de arco e flecha era acompanhado com a canção Lishou, e no subúrbio ocidental com a canção Tsouyu (contida no Livro dos Cantares). A praxe de atirar trespassando o alvo foi eliminada. Os trajes cerimoniais e os bastões de audiência (que os ministros traziam nas mãos enquanto avistavam-se com o imperador) passaram a ser observados, e os cavaleiros deixaram de usar espadas. Sacrifícios tiveram lugar no Grande Templo (o Ming- tang ou “Pátio da Clara Virtude"), para que o povo pudesse compreender a piedade filial; as etiquêtas de audiência na côrte foram instituídas, para que os vassalos soubessem como render suas homenagens; criou-se também a cerimônia do Imperador lavrando êle próprio a terra, para que o povo aprendesse a respeitar a natureza. Essas instituições, em número de cinco, constituíam os cinco grandes princípios culturais do país.
No Colégio Imperial, os Três Mais Velhos e os Cinco Superiores foram mantidos. O Imperador desnudava seu braço direito[xxi] para sangrar os animais sacrificados e entregava-os então aos Mais Velhos; tomava em suas mãos a vasilha de condimentos e punha-a diante dêles; segurava a taça de vinho e dava-lhes de beber (literalmente: “gargarejar"). Enquanto isto, o Imperador ostentava a sua coroa e o seu escudo. Tudo era feito para que os cidadãos se imbuíssem do senso de humildade e respeito. Dêste modo a cultura dos Chous expandiu-se por tôda a China, e a música e os rituais prevaleceram no país inteiro. Não se compreende melhor, agora, por que é que no princípio da Dança de Wu os dançarinos ficam por tanto tempo em linha, esperando (o tempo simbólico até os demais governantes seguirem) o Imperador Wu?"
LIKI, Cap. 26
Ching Chieh – Educação através dos Clássicos
Confúcio disse: Assim que entro num país, posso dizer facilmente o seu tipo de cultura. Quando o povo é gentil e bom e simples de coração, isto se demonstra pelo ensino da poesia. Quando o povo é esclarecido e cioso de seu passado, isto se demonstra pelo ensino da história. Quando o povo é generoso e disposto ao bem, isto se demonstra pelo ensino da música. Quando o povo é quieto e pensativo, com agudo poder I de observação, isto se demonstra pelo ensino da filosofia das mutações (I Ching, ou Livro das Mutações) . Quando o povo é humilde e respeitoso, sóbrio de costumes, isto se demonstra pelo ensino da li (princípio da ordem social). Quando o povo é culto na maneira de falar, ágil nas figuras e na linguagem, isto se demonstra pelo ensino da prosa (Chun Chiu, ou Livro das Primaveras e dos Outonos[xxii]). O perigo do ensino da poesia é que o povo continua ignorante ou demasiado simplório; o perigo do ensino da história é que o povo chegue a imbuir-se de falsas lendas e narrativas; o perigo do ensino da música é que o povo se se tornou extravagante; o perigo do ensino da filosofia é que o povo fique desnaturado; o perigo do ensino da li é que os rituais se tornem muito afetados; e o perigo do ensino do “Livro das Primaveras e Outonos” é que o povo se deixe contaminar pela confusão moral dominante. Se um homem é gentil e bom e simples, mas não ignorante, decerto será profundo no estudo da poesia; se um homem é esclarecido e cioso do seu passado, mas não imbuído de falsas lendas e narrativas, decerto será profundo no estudo da história; se um homem é generoso e disposto ao bem, mas não extravagante em seus hábitos pessoais, decerto será profundo no estudo da música; se um homem é quieto e pensativo, com agudo poder de observação, mas não desnaturado, decerto será profundo no estudo da filosofia; se um homem é humilde e respeitoso e sóbrio em seus hábitos, mas não afetado nos rituais, decerto será profundo no estudo da li; e se um homem é culto na maneira de falar, ágil nas figuras e na linguagem, mas não contaminado pela confusão moral dominante, decerto será profundo no estudo do Livro das primaveras e Outonos”.[xxiii]
O imperador ombreia, em sua posição, com o Céu e aTerra; portanto o seu valor ou a sua função moral iguala-se à do Céu e da Terra, presidindo ao curso de miríades de coisas para o bem de ambos. Brilha Com o Sol e a Lua, e derrama sua luz pelos Quatro Mares, sem exclusão dos menores objetos. Na côrte, êle discute o ideal da humanidade moral e os princípios da ordem social. No lar, escuta a música de ya (cantos clássicos) e de sung (partituras sagradas). Quando passeia a pé, ouve-se tilintar os pendentes de jade; e quando sobe a uma carruagem, ouve-se a música dos "guizos da fênix". Há decôro em sua caseira e seu comportamento está sempre de acôrdo com os bons costumes. Assim, através dêle, as autoridades recebem os devidos encargos e ordena-se todo o curso da vida social. O Livro dos Cantares diz: "O soberano virtuoso é sem mácula em sua conduta e aparência, e sendo imaculado em sua conduta e aparência serve de exemplo a tôda a nação." Quando conta com a vontade de obedecerem às suas ordens, êle consegue o que se chama “harmonia" no país. Quando o governante e os governados são cordiais e bons uns para os outros, êle consegue o que se chama "clima de cordialidade". Quando os cidadãos têm meios de alcançar o que desejam, sem necessidade de pedir, êle consegue o que se chama "confiança" do povo. E quando remove as causas de infelicidade de sua gente, êle consegue o que se chama "vida decente" para a nação, A "harmonia" geral e o "clima de cordialidade" são os meios pelos quais os que governam pela fôrça (pa) e os que governam pela virtude (wang) governam seus países; com a intenção determinada, mas sem êsses meios de governar, jamais poderão realizar seus propósitos.
Li, o princípio da ordem social, é para uma nação o que as escalas são para a medição, o que a régua do carpinteiro é para a retidão, o que o compasso e o esquadro são para o traçado de círculos e quadriláteros, Quando as escalas são exatas, não haverá êrro quanto à medição; quando a régua é direita, não haverá êrro quanto à retidão; quando os compassos e esquadros são usados com acêrto, não haverá êrro quanto ao traçado das curvas e ângulos; assim, quando o soberano é afeito ao princípio da ordem social (li), não haverá êrro por deslizes ou espertezas. Por isso, um povo que respeita e segue a li pode dizer-se "um povo de princípios definidos", e um povo que não respeita a li diz-se "um povo sem princípios".
Li é o princípio da cortesia e do respeito mútuo. Por isso, quando aplicado ao culto nos templos, tem-se a piedade; quando aplicado na côrte, tem-se a ordem nas esferas oficiais; quando aplIcado no lar, tem-se a afeição entre pais e filhos, harmonia entre os irmãos; quando aplicado na cidade, tem-se o acatamento da ordem entre os mais velhos e os mais moços. Eis por que tinha cabimento o que dizia Confúcio: "Nada melhor do que a li para a preservação da autoridade e para o govêrno do povo."
O cerimonial relativo às audiências na côrte tem por fim caracterizar as relações entre governantes e ministros. O cerimonial da troca de visitas de diplomatas tem por fim manter o respeito mútuo entre os governantes dos diversos países. As cerimônias fúnebres e os rituais de sacrifício têm por fim patentear a gratidão das crianças e dos servos. O cerimonial da festa do vinho tem por fim delinear a disciplina e a ordem entre os mais velhos e os mais moços. As cerimônias de casamento têm por fim realçar a distinção entre os sexos.
Li. ou o princípio da ordem social, previne o advento do caos moral e social, como um dique previne a inundação. Assim como quem pensa que pode destruir uma reprêsa, por julga-la inútil, certamente há de expor-se aos danos de uma enchente assim o povo que desprezar o antigo princípio da. ordem social, por considera-lo inútil, certamente ficará exposto a uma catástrofe. Daí que, se as cerimônias do casamento não são observadas ou tomadas a sério, as relações conjugais tornam-se difíceis e a promiscuidade será iminente; quando não são observadas as cerimônias da "festa do vinho", a noção de ordem e disciplina entre os mais velhos e os mais moços acaba, e serão comuns os casos de rixas e escaramuças; quando não são observados os ritos de funeral e os sacrifícios, o senso de gratidão das crianças e dos servos perante seus maiores falirá, haverá relaxamento na conduta de muitos e ofensa de muitos contra seus mortos; quando não é observado o cerimonial das visitas de diplomatas, a relação entre os feudos e os soberanos estará ameaçada, os chefes de Estado tornar-se-ão arrogantes ou arbitrários, e terão lugar as guerras e invasões.
A ação cultural da li é, pois, incalculável. Previne o relaxamento da conduta e gradativamente induz o povo a buscar a virtude e a afastar-se do vício, sem dar por isto. Eis por que os grandes reis da Antigüidade reconheciam à li tamanha importância. E não é outro o sentido desta passagem do Livro dos Cantares: "O soberano há de ser cuidadoso ao iniciar qualquer coisa: uma diferença de centésimo ou milésimo de polegada, no princípio, no fim acarreta um desvio de mil milhas."
LIKI, Cap. 27
Aikungwen – Entrevista com o Duque Ai
O Duque Ai perguntou: - "Que grande coisa é essa li? Por que falais dela como se fôsse algo muito importante?"
Confúcio respondeu: - "Vosso humilde servo realmente ainda não teve o mérito de bem compreender a li.”
- "Mas constantemente vos referis a ela" - tornou o duque.
Confúcio: - “O que cheguei a aprender é isto: que de tôdas as coisas das quais vive um povo, li é a maior. Sem li, não sabemos como praticar devidamente o culto aos espíritos do Universo; ou como estabelecer devidamente as relações entre o rei e seus ministros, o governante e os governados, os adultos e os jovens; ou como orientar as relações morais entre os dois sexos, entre pais e filhos, entre irmãos; ou como ordenar os vários tipos de relações de família. Eis por que um gentil - homem tem a li em tamanho aprêço, e procura ministrar os seus princípios ao povo e por ela regular as formas da vida social. Quando tais formas estão estabelecidas, então êle institui insígnias e trajes cerimoniais distintos, como símbolos de autoridade, a fim de perpetuar as instituições. Quando tôdas as coisas estão em ordem, êle trata de fixar os períodos de enterramento e luto, cuida dos vasos para os sacrifícios e das oferendas devidas, e em beleza os templos ancestrais. Todo ano realizam-se sacrifícios, nas épocas devidas, a fim de ser trazida a ordem social ao seio dos clãs e das tribos. Então retira-se êle para a sua residência particular, onde vive em satisfeita simplicidade, simples no trajar e na habitação, sem carruagens lavradas e sem vasilhame trabalhado, compartilhando dos mesmos alimentos e das mesmas alegrias do povo. Eis como os antigos príncipes viveram, de acôrdo com a li."
O Duque Ai: - "Por que não fazem o mesmo, os príncipes de hoje?"
Confúcio: - "Os príncipes hoje em dia têm cobiça de bens materiais. Entregam-se aos prazeres, negligenciam o dever e dão-se ares orgulhosos; extorquem ao povo o mais que podem, invadem o território dos bons governantes contra a vontade popular, e assim vão em busca do que ambicionam sem cogitar se é ou não direito. Esse é o procedimento dos modernos príncipes, e aquêle outro era o procedimento dos antigos, dos quais acabei de falar. Os governantes de hoje não seguem a li."
Confúcio estava sentado em companhia do Duque: Ai. e o duque perguntou: - "Qual é, em vossa opinião, a mais alta condição do progresso humano?" Confúcio assumiu um ar muito grave, e respondeu: - "É uma felicidade para o povo, que Vossa Alteza me haja formulado essa pergunta. Farei o que estiver ao meu alcance para responder bem: a mais alta condição do progresso humano é o bom govêrno."
O duque: --- "Posso indagar qual seja a arte do bom govêrno?"
Confúcio: - "A arte do govêrno consiste simplesmente em fazer bem as coisas, ou seja, pôr as coisas em seus devidos lugares[xxiv]. Quando o próprio governante procede “bem", o povo imita-o naturalmente no bom procedimento. O povo apenas segue o que o governante faz - pois se o governante não faz, como há de o povo saber o que e como fazer?"
O duque: - "Falai com maior minúcia, dessa arte do govêrno."
Confúcio: - "O marido e a mulher devem ter obrigações diversas. Os pais e os filhos devem ter afeição uns pelos outros. O rei e seus vassalos devem observar uma disciplina rígida. Quando estas três coisas vão bem, tudo irá bem."
O duque: - "Podeis esclarecer-me um pouco mais quanto à maneira de realizar essas três coisas, inepto como sou?"
Confúcio: - "Os governantes antigos consideravam o amor ao povo como principal norma de govêrno, e a li como principal norma segundo a qual reger o povo que amavam. No culto à li a noção de respeito é a mais importante, e como símbolo máximo dêsse respeito a cerimônia do casamento do soberano é a mais importante. A cerimônia das núpcias reais é o símbolo máximo do respeito, e, por ser o símbolo máximo do respeito, o próprio rei vai, ostentando a sua coroa, saudar a princesa e acompanhá-la em pessoa desde a casa dela, tão alto é o grau de parentesco que êle atribui à noiva. O rei vai pessoalmente porque as relações de família são consideradas inteiramente pessoais. Negligenciar essas manifestações de respeito é desmerecer as relações pessoais. Sem amor não haverá relações pessoais, e sem respeito não haverá boas relações. Amor e respeito são, assim, os fundamentos do govêrno."
O Duque Ai: - "Tenho uma coisa a argüir: não será fazer das núpcias reais uma coisa demasiado séria, exigindo-se que o rei vá coroado buscar a princesa em casa dela?"
Confúcio pôs-se grave e respondeu: - "Por que falais assim? Um casamento real representa a união de duas casas soberanas, com o fim de prolongar a linhagem real e gerar novos rebentos que venham a presidir aos cultos do Céu e da Terra, dos espíritos ancestrais, dos deuses da gleba e dos alimentos."
O Duque Ai: - "Perdoai-me insistir na questão, mas a não ser assim não poderei ouvir vossa opinião sôbre o assunto. Quero perguntar-vos outra coisa, mas ainda não sei bem como fazê-lo. Quereis continuar?"
Confúcio: - "Vêde, se o Céu e a Terra (yin e yang) não se unem, não haverá vida no mundo. Um casamento real tem por fim a perpetuação da casa reinante através de milhares de gerações. Como não tomá-lo muito a sério?”
E Confúcio falou ainda: - "Na arte do govêrno, li vem em primeiro lugar - é o meio pelo qual se estabelecem as formas de culto, capacitando o governante; a comparecer perante os espíritos do Céu e da Terra,. por um lado, e por outro e o meIo pelo qual se estabelecem as formas de convívio na côrte e um sentimento de respeito entre governante e governados; ela reanima ou ressuscita a vida social e política, erguendo-a acima da catastrófica confusão. Portanto, li é o princípio de govêrno."
E Confúcio prosseguiu, dizendo: "Os grandes reis da Antigüidade sempre manifestaram respeito e consideração para com suas espôsa.s e filhos, segundo uma justa praxe. Como pode alguém desrespeitar ou desmerecer a própria espôsa, se é ela o fulcro do lar? E como pode alguém desrespeitar ou desconsiderar os próprios filhos, se são êles os perpetuadores da família? O gentil-homem mostra sempre consideração e respeito por tudo. Começa por respeitar e prezar a si mesmo: como pode alguém desrespeitar ou menosprezar a si mesmo, se é um ramo da árvore da própria família? Faltar com o respeito a si mesmo é ofender a família, e ofender a família é abalar-lhe as raízes, e quando se abalam as raízes os ramos fenecem. Estas três coisas o tratamento dado à espôsa, aos filhos, e a si mesmo simbolizam as relações humanas no seio do povo. Dando mostras de respeito a si mesmo, ensina-se o povo a respeitar-se; dando mostras de respeito aos filhos, ensina-se o povo a respeitar seus filhos; dando mostras de respeito à espôsa, ensina-se o povo a respeitar suas espôsas. Quando um soberano realiza essas três coisas, seu exemplo há de ser imitado pela nação inteira. Tal é o princípio do Rei Tai (avô do Rei Wen). Assim as relações harmoniosas prevalecerão no país.”
O Duque Ai: "Posso perguntar o que significa dar mostras de respeito a si mesmo?"
Confúcio: "O soberano é citado pelo povo quando fala errado, e é imitado pelo povo quando procede errado. Quando o soberano fala e procede sem errar, então o povo aprende a respeitá-lo sem precisar de leis nem regulamentos. Assim o soberano dá mostras de respeito a si mesmo, e demonstrando respeitar a si mesmo êle glorifica seus antepassados."
O Duque Ai: - "Posso indagar o que quereis dizer com ”glorificar alguém a seus antepassados?"
Confúcio: - "Quando um homem ganha boa fama, passamos a tratá-lo como um príncipe ou um varão principesco[xxv], e de bom grado as pessoas o seguem, dizendo que é um filho de príncipe ou um fidalgo: assim seu pai é considerado príncipe por causa dêle e tem assim glorificado o seu nome."
Confúcio prosseguiu, dizendo: - "Os governantes antigos consideravam o amor ao povo como fator primordial para o govêrno. Sem amar o povo, o governante não pode realizar seu ser autêntico; e sem realizar ou captar seu ser autêntico, não pode implantar a paz em sua terra; sem paz em sua. terra, não pode fruir a vida em conformidade com a lei de Deus; sem ser em conformidade com a lei de Deus, não terá uma vida plena."
O Duque Ai: - "Posso perguntar o que para vós significa "ter uma vida plena?"
Confúcio: - "Seguir a ordem natural das coisas."
O Duque Ai: - "Posso indagar por que é que o genitl-homem dá tanta importância às leis divinas?"[xxvi]
Confúcio: - "O gentil-homem dá tanta importância à lei de Deus porque ela é eterna. Estai habituado a ver o sol e a lua eternamente seguindo um ao outro, em suas órbitas, por exemplo - é lei de Deus; a vida não cessa nunca no Universo e continua sempre - é lei de Deus; as coisas criam-se ou acontecem sem nenhum esfôrço ou atrito - é lei de Deus. Quando as coisas se criam ou se reproduzem, o Universo ilumina-se - é lei de Deus."
O Duque Ai: - "Sinto-me estúpido e confuso; quereríeis tornar isto mais simples, mais claro, a fim de que eu o possa lembrar?"
Mudou a fisionomia de Confúcio, que se ergueu de onde estava sentado e falou: - "Um grande homem apenas observa a ordem natural das coisas. Um bom filho apenas acata a lei natural das coisas. Portanto, um grande homem sente que está servindo a Deus enquanto serve a seus pais, e sente que está servindo a seus pais enquanto serve a Deus. Assim, o bom filho tem uma vida plena."
O Duque Ai: - "Dou-me por extremamente feliz de ter ouvido estas vossas palavras, e rogo que me perdoeis se eu não conseguir pautar por elas a minha vida. daqui por diante."
Confúcio: - "O prazer foi todo meu."
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[xiv] Em todo o sistema do pensamento confuciano o simbolismo representa importantíssimo papel. Confúcio parece que tinha sempre em mente a necessidade de exemplos e símbolos para o povo, algo que a mentalidade do homem comum conseguisse fixar. Assim como a coroa é o símbolo da autoridade do rei, também o sol era o símbolo do rei e a lua o símbolo da rainha, e os diversos vasos cerimoniais e as insígnias de nobreza e posição haviam de constituir símbolos de autoridade divina ou secular. Os músicos orientais reconhecem as diferentes qualidades emocionais das melodias, tais como a "Lidica" e a "Eólia". Fora disto, porém, a fim de compreender semelhante simbologia musical, deverá o interessado imiscuir-se na cosmogonia chinesa antiga - segundo a qual tôda a vida seria resultante da interação dos cinco elementos e dos dois princípios yin e yang. Esses princípios regeriam tanto os fenômenos naturais quanto as relações humanas, e o ideal dos confucionistas era exatamente repor a conduta humana em harmonia com as fôrças cósmicas. Correspondendo aos cinco elementos (metal, madeira, água, fogo e terra), têm-se as "cinco côres", os "cinco sabores" de alimentos, as "cinco claves" musicais da escala pentatônica, os "cinco graus de parentesco" no sistema familiar, e as "cinco direções" no universo (Leste, Oeste, Sul, Norte e Centro). Cada dinastia imperante tem uma "direção" simbólica, representada por uma côr simbólica, etc. Para maiores detalhes quanto ao, antigo sistema musical chinês, ver a interessante e competente obra intitulada Foundations of Chinese Musical Art. de J. H. LEWIS (Vetch. Peiping).
[xv] O texto é um tanto ambíguo. neste ponto. Uma das interpretações - "o tambor" em vez de "os movimentos da dança civil", "os cimbalos" em vez de "os movimentos da dança militar", e "marca o compasso com o tambor de barro" em vez de "mantém a continuidade de movimentos do comêço ao fim".
[xvi] Havia doze tipos de tubos sonoros, maiores e menores, perfazendo a escala diatônica.
[xvii] Neste item comentam-se apenas cinco das oito espécies de instrumentos musicais chineses. As três espécies restantes são: a cabaça, os instrumentos de barro e os de madeira. Os metais não aparecem, o tambor representa o grupo do "couro". Os comentaristas chamam a atenção para o fato de que os sons do tambor, da caixa de madeira quadrada e dos tubos de barro, pela sua singeleza, são os escolhidos para a música sacra.
[xviii] Aqui dá-se a entender que a inscrição da melodia inimiga, demonstrando licenciosidade e violência, foi feita originalmente com o propósito de completar o quadro simbólico. Nada se sabe a respeito de Pinmou Chia; êle e Confúcio teriam sido, talvez, colegas no estudo da música, debatendo essas questões amistosamente. Dêste ponto em diante Confúcio entra a expender a sua própria interpretação, que em dois pontos contraria a de Pinmou.
[xix] De acôrdo com o Shuking, a música para flauta do hsiao (atribuída ao Imperador Shun) consta de nove movimentos. Essa música hsiao Confúcio dizia ser inteiramente boa e perfeitamente bela; quanto à música de Wu, dizia êle que era perfeitamente bela mas não inteiramente boa. Confúcio deixou de comer carne durante três meses, enquanto estudava o hsiao.
[xx] Pikan era um bom príncipe, e por haver protestado contra a crueldade do Imperador Chou, de Shang, seu tio fora condenado à morte. A ascendência do clã dos Lin, a que se filia o autor dêste livro, rastreia-se - é êle mesmo quem o declara - até êsse príncipe, em bases meramente lendárias.
[xxi] Costume usado (primitivamente, creio) nos jogos de arco e flecha, por motivos de ordem prática, enrolando-se a manga do braço esquerdo; mais tarde passou às cerimônias rituais.
[xxii] Os Seis Clássicos, ao tempo de Confúcio.
[xxiii] “Primaveras e Outonos”, como hoje o temos, é uma espécie de crônica dos acontecimentos políticos durante os séculos anteriores a Confúcio, escrita pelo próprio Mestre. Mas o titulo “Primaveras e Outonos”, ou Ch'un Ch'iu, ao tempo de Confúcio designava uma coleção de crônicas de vários paises, de modo geral. Sabe-se com certeza que existiram êsses textos de “Primaveras e Outonos”. A confusão moral, na época de Confúcio, era incrível. Reis eram assassinados por seus vassalos e os príncipes desposavam concubinas paternas, com uma série de relações incestuosas; os barões, por sua vez, outorgavam-se o titulo de "reis", e havia um verdadeiro caos nas práticas religiosas. Uma boa descrição desse mau estado de coisas, social e moral, encontra-se no Faugchi (Capitulo XXX do LI-KI), onde se tem uma visão das circunstâncias sociais que justificariam a intenção de Confúcio restaurar o regime feudal, como verdadeira panacéia para os males sociais de seu tempo.
[xxiv] As palavras chinesas correspondentes a "govêrno" e "estar bem" ou "fazer bem" têm exatamente a mesma pronúncia. Os Caracteres de "govêrno" escrevem-se com dois componentes - "bem" e uma partícula causativa, significando o conjunto "fazer normal" ou "pôr as coisas em seus devidos lugares". Esse conceito de cheng ou "normalidade" não tem correspondente exato em língua ocidental; está implícito em expressões como "ter uma boa orientação", "tipo de pessoa boa" ou "boa conduta". A palavra inglêsa mais aproximada é right (direito, correto, certo, etc.). O referido conceito associa-se à noção de "ortodoxia", com a expressão sheh ou "heterodoxia" por antônimo. Um homem de quem se diz que é chen é "o que procura fazer o que é bom, direito e correto", e um homem de quem se diz que é sheh é aquêle que anda sempre a maquinar meios escusos para alcançar objetivos duvidosos.
[xxv] A expressão chuntse é difícil de traduzir, e já diversos autores verteram-na como "o homem superior, "o homem principesco", "o gentil-homem", "o soberano" e "o governante". Tem certamente dois sentidos: um é o do "gentil-homem” ideal ou "homem superior", ou seja o homem de cultura e de caráter, que se distingue do "homem comum" ou "homem inferior"; no segundo sentido é "o governante" ou "o soberano". Nos discursos confucianos os dois sentidos surgem muitas vêzes juntos e fundem-se imperceptivelmente, um no outro, de maneira que a mesma expressão designa com efeito o governante culto e bom e sábio, ideal de Confúcio, muito semelhante ao "filósofo-rei" de Platão. De modo geral, havia uma classe dominante culta, em oposição à massa vulgar e analfabeta, e Confúcio atribui a um significado moral a essa distinção entre o homem superior e o homem inferior. O oposto de chuntse é hsiaojen, ou seja, traduzindo literalmente, "o homem pequenino", expressão que por sua vez adquire dois sentidos - o homem moralmente inferior, e o "plebeu" (“commoner”, na acepção britânica).
[xxvi] Dois conceitos aqui se distinguem. Primeiro, as leis do homem - jentao - traduzidas no comêço dêste capítulo como "progresso humano", sobre as quais argüira o Duque Ai e que Confúcio condicionou ao bom "govêrno". Toda a entrevista versa, até êste ponto, sobre as leis do homem e o govêrno. Aqui o Duque Ai principia a indagar das leis de Deus, porque Confúcio fala em viver em conformidade com a lei de Deus.