Nüjie 女誡
[ou "Lições Femininas"] é um pequeno tratado sobre a conduta feminina
escrito por Ban Zhao 班昭 (49-120ec). Ban
Zhao foi uma importante intelectual do período Han 漢, tendo
produzido volumosa obra, em grande parte perdida hoje. Nüjie é um dos primeiros
livros a discutir a condição feminina na sociedade chinesa antiga, orientando
as mulheres nos mais diversos aspectos da vida. O livro sofreu intervenções ao
longo dos séculos, e por isso tem uma interpretação controversa. Muitos julgam
tratar-se de um dos primeiros livros feministas da história, enquanto outros
afirmar ser um manual de conduta feminina que reforçava as estruturas
patriarcais. De qualquer forma, foi um dos mais influentes livros na tradição
confucionista. Trad. A. Bueno [2022].
Introdução
Sou uma escritora
indigna, deselegante, ignorante e por natureza pouco inteligente, mas sou
afortunada por ter recebido a atenção de meu pai erudito e de minha culta mãe,
além de ter professores de quem recebi uma educação literária e orientações nos
ritos. Mais de quarenta anos se passaram desde que, aos quatorze anos, peguei a
pá e a vassoura na família Cao [família do marido]. Durante esse tempo, com o
coração temeroso, tive receio constante que pudesse desonrar meus pais e
aumentar as dificuldades tanto para as mulheres quanto para os homens da
família de meu marido. Dia e noite eu passava de coração angustiado, mas
trabalhei sem mostrar cansaço. Agora, sei como não cometer erros e evita-los no
futuro.
Sendo descuidada e
ignorante por natureza, ensinei e eduquei meus filhos sem um método adequado.
Com isso, tenho receio que meu filho Gu possa trazer desgraça sobre a Dinastia
Imperial, por cuja dádiva ele recebeu o privilégio extraordinário de usar o
Ouro e a Púrpura, uma concessão o para o qual meu filho, um humilde súdito, não
esperava receber.
No entanto, agora que
ele é um homem e capaz de planejar sua própria vida, não preciso mais me
preocupar com ele. Mas lamento que vocês, minhas filhas, agora na idade de
casar, não tenham recebido a educação adequada, não tenham sido aconselhadas e
nem mesmo tenham aprendido os modos apropriados para mulheres casadas. Receio
que se vocês falharem em comportar-se junto as outras famílias, podem atrair
desgraças e humilhar tanto seus ancestrais quanto sua própria família. Agora
estou gravemente doente, e a vida é incerta. Sinto uma profunda inquietude por
vocês não terem recebido educação adequada. Assim, dediquei-me nas horas vagas
a compor essas Lições para Mulheres, e espero que vocês possam se beneficiar
delas. Peço que vocês copiem esse livro, guardem-no e se esforcem para praticar
as lições que ele contém.
Humildade
No terceiro dia após o
nascimento de uma menina, os antigos observavam três costumes: primeiro colocar
o bebê debaixo da cama; segundo, dar-lhe um caco de cerâmica para brincar;
terceiro, anunciar seu nascimento aos antepassados por meio de uma oferenda.
Colocar o bebê embaixo
da cama servia para mostrar claramente sua humildade e fraqueza, e seu dever
fundamental seria devotar-se aos outros.
Dar-lhe cacos de
cerâmica para brincar significava que ela deveria se dedicar ao trabalho e ser
infatigável.
Anunciar seu nascimento
diante dos ancestrais significava que ela deveria considerar, como seu
principal dever, a continuação da observância do culto ancestral familiar.
Esses três costumes
antigos resumem o modo de vida ideal da mulher, os ensinamentos rituais e os
costumes tradicionais.
A mulher que põe as
vontades dos outros à frente da sua; respeita aos outros e se colocar por
último; fazer o bem sem mencionar; erra e admite; aguenta as dificuldades,
suportar a maledicência e a grosseria alheia; aparenta temor e receio; quando
uma mulher segue essas orientações, podemos dizer que ela é realmente humilde
perante os outros.
A mulher que dorme
tarde e levanta cedo; não foge as tarefas de casa, seja de dia ou de noite,
sejam elas leves ou pesadas; que não para até que tudo esteja feito, e o faz de
forma rotineira e organizada; uma mulher que age dessa forma, podemos dizer que
ela é incansável perante os outros.
A mulher correta nos
modos e reta de caráter, que serve ao marido; que se mantém casta e de espírito
tranquilo; que cuida da sua própria vida; que não é maledicente nem debochada;
que se prepara corretamente, cuidando e purificando o vinho e comida para as
oferendas aos ancestrais; quando uma mulher observa tais princípios, podemos
dizer que ela dá continuidade ao culto ancestral.
A mulher que segue
esses três preceitos de vida jamais teve má reputação ou caiu em desgraça. Se
uma mulher não os segue, como seu nome poderá ser honrado; como ela evitará que
a desgraça recaia sobre si mesma?
Marido e Esposa
O Caminho de marido e
mulher está intimamente ligado ao Yin e ao Yang, assim como a relação dos
indivíduos com deuses e ancestrais.
Grande é o caminho do
Céu e da Terra, como também são as relações íntimas humanas.
Portanto, os
"Ritos" [Liji] honram a união do homem e da mulher; e no "Livro
da Poesia" [Shijing] a "Primeira Ode" revela o princípio do
casamento. Por essas razões, as relações humanas não devem de forma alguma
serem menosprezadas.
Se um marido é indigno,
então ele não direito de exigir nada sua esposa. Se uma esposa é indigna, então
ela não pode esperar nada de seu marido. Se um marido não controla sua esposa,
então as regras de conduta que manifestam sua autoridade são abandonadas e
quebradas. Se uma esposa não serve ao marido, a relação ideal entre homens e
mulheres é negligenciada, e a ordem natural das coisas fica arruinada.
O sentido de ambos –
controlar as mulheres, e servir os homens – é o mesmo.
Ao examinar os senhores
de hoje, eles apenas sabem que as mulheres devem ser controladas, e que eles
devem impor regras de conduta adequadas para ter alguma autoridade. Por isso,
eles ensinam os meninos a ler e a estudar as histórias. Eles não entendem que
os maridos devem ser servidos, e que o relacionamento adequado deve ser regido
pelos ritos. Mas se educarmos os homens, e não educarmos as mulheres, como
esperar que a essência das relações seja alcançada?
De acordo com os
"Ritos", deveríamos ensinar as crianças a ler aos oito anos de idade,
e aos quinze anos de idade elas devem estar prontas para estudar os costumes.
Por qual razão então a educação das meninas deveria ser diferente da educação
dos meninos?
Respeito e Atenção
Assim como o Yin e o
Yang não são da mesma natureza, o homem e a mulher têm características
diferentes. A qualidade de Yang é a rigidez; a função do Yin é ser flexível. O
homem é honrado pela força; a mulher, por sua suavidade. Daí surgiu o ditado:
‘um homem pode nascer como um lobo, mas teme-se que vire uma criatura débil;
uma mulher pode nascer como um ratinho, mas teme-se que ela se transforme numa
tigresa’.
Por isso, para o autocultivo,
nada é igual do que o respeito pelos outros. Para equilibrar o firme, o melhor
é o flexível. Logo, pode-se dizer que o Caminho do respeito e da
condescendência é o princípio de conduta mais importante da mulher.
O respeito pode ser
definido como ater-se aos princípios; a condescendência, a ser leniente e
generosa. Quem se atém aos princípios é firme em sua devoção, e sabe seu lugar;
quem é generosa, sabe honrar e cuidar dos outros, servindo-os e honrando-os.
Se marido e mulher
convivem juntos, nunca deixando um ao outro, e seguindo um ao outro dentro dos
limites de seus cômodos, então é provável que se engracem e sejam atrevidos um
com o outro. Disso irá surgir um diálogo inapropriado, e ambos podem cair na
licenciosidade. Se a licenciosidade nascer no coração da mulher, virá o
desrespeito ao marido. Isso é o que resulta de não se saber ficar no seu lugar.
Os assuntos podem ser
apropriados ou não; as palavras podem ser certas ou erradas; ideias fracas
levam a discordância; desonestidade leva à desconfiança; e acusações e brigas
levam à raiva mútua. Isso é o que resulta de não cuidar, não honrar nem servir
aos outros.
Se as esposas não
suprimirem o desprezo que nutrem por seus maridos, elas vão repreendê-los
constantemente. Se os maridos não pararem de se enraivecer, acabarão agredindo
suas esposas. O respeito [as regras do relacionamento apropriado] entre homem e
mulher se baseia na harmonia e na intimidade, e o amor nasce de uma união
equilibrada. Se ambos ficarem implicando um com o outro, como o casamento
poderá durar? Se usarem palavras afiadas, como o amor irá sobreviver? Se o
respeito mútuo e o amor forem desfeitos, marido e mulher ficarão divididos
Qualificações Femininas
Uma mulher deve ter
quatro Qualificações: virtude; fala; porte e esforço.
‘Virtude’ é não ter
habilidades destacadas ou ser diferente das outras pessoas.
‘Fala’ é saber
expressar-se sem ser erudita ou ofensiva.
‘Porte’ é não precisar
ter uma beleza destacada ou perfeita.
‘Esforço’ é não
precisar ter mais habilidade dos que as outras pessoas.
Guardar castidade,
controlar os sentimentos, ser modesta, agir discretamente, isso é a ‘virtude’.
Falar cuidadosamente,
não ser vulgar, ser oportuna e não ser cansativa, isso é ‘fala’.
Limpar a sujeira
constantemente, manter a roupa e ornamentos limpos, assear-se sempre, evitar a
imundície, isso é ‘porte’.
Tecer e costurar
devotadamente, evitar fofocas e deboches, cozinhar e ser hospitaleira com
convidados, isso é ‘esforço’.
Essas quatro
qualificações são a maior virtude de uma mulher. Nenhuma mulher pode prescindir
delas. Na verdade, elas são muito fáceis de possuir, se a mulher simplesmente
as guardar em seu coração. Os antigos tinham um ditado: "O amor está
longe? Se deseja o amor, então o amor está em suas mãos!" São o que
significam essas quatro qualificações femininas.
Coração Devotado
Nos Ritos [Liji] está escrito
que um marido pode se casar novamente, mas não há nenhum texto que autorize uma
mulher a se casar uma segunda vez. Por essa razão que se diz: o marido é como o
Céu, e tão certo como não se pode fugir dele, uma esposa não pode deixar a casa
do marido.
Se as pessoas
desobedecem aos espíritos do Céu e da Terra com suas ações, então o Céu os
pune. Do mesmo modo, se uma mulher descumpre os ritos ou age de forma
inapropriada, então seu marido a tratará com leviandade. Um livro antigo, ‘O
Modelo para Mulheres’ diz: ‘conquistar o
amor de um homem é o coroamento da vida feminina; perdê-lo é perder também o
sentido da vida’.
Por essa razão, uma
mulher não pode deixar de conquistar o coração de seu marido. Deve evitar
súplicas, bajulações, constrangimento e sedução vulgar para ganhar intimidade.
Para conquistar o coração do marido, é preciso devoção correta e sincera,
seguindo os ritos e os modos apropriados, vivendo uma conduta pura. Não dar
ouvidos a coisas licenciosas, nem ver coisas inapropriadas. Fora de casa, ela é
discreta ao se vestir e se portar. Dentro de casa, cuida do asseio. Evita se
reunir com outras mulheres para fofocar ou debochar; nem fica à espreita dos
outros nos umbrais. Se ela consegue seguir esses conselhos, terá realmente uma
devoção correta e modos apropriados.
Uma mulher frívola, que
só dá atenção ao que lhe agrada, que se veste com desleixo e tem aparência
desgrenhada dentro de casa; que fora dela, faz questão de chamar a atenção por
sua beleza, fala o que lhe vem a cabeça e fica vigiando aos outros; uma mulher
assim não tem devoção sincera, e nem modos corretos.
Obediência Interna
Agora, se o ditado
‘conquistar o amor de um homem é o coroamento da vida feminina; perdê-lo é
perder também o sentido da vida’ aconselha uma devoção sincera, o mesmo deve
ser aplicado ao sogro e a sogra.
Há momentos em que o
amor pode levar a diferenças de opinião entre as pessoas; e por consequência, a
desentendimentos mais sérios. Mesmo que o marido goste de algo, se os sogros
dizem ‘não’, esse é um caso em que o dever feminino leva ao desacordo. Assim,
como agradá-los? Nada é melhor do que a obediência que sacrifica a opinião
pessoal.
Sempre que a sogra diz
‘não faça isso’, se ela estiver inquestionavelmente correta, a nora deve
obedecê-la. Se a sogra diz ‘faça isso’, mesmo que ela esteja errada, a nora se
submete a sua vontade.
A mulher não deve agir
contra a vontade e as opiniões dos sogros, nem discutir sobre o que certo ou
errado, sobre o que é apropriado e inapropriado. Essa flexibilidade é o que se chama
‘a obediência que sacrifica a opinião pessoal’. Por isso o livro ‘O Modelo para
Mulheres’ diz: ‘se uma nora segue os desejos de seus sogros como um eco ou como
uma sombra, como ela não poderia ser apreciada?’
Cunhadas e Cunhados
Para que uma esposa
ganhe o amor de seu marido, ela precisa ganhar o amor de seus sogros. Para
conquistar para si o amor de seus sogros, ela deve garantir para si a boa
vontade de cunhados e cunhadas mais novas. Por isso, a apreciação correta ou
não, o elogio ou a repreensão de uma mulher dependem igualmente dos cunhados e
cunhadas mais novas. É imprescindível manter sua afeição.
É estupidez perder a
afeição dos cunhados e cunhadas mais jovens, bem como não buscar ser íntimos
deles. Com exceção apenas dos sábios, é muito difícil ser infalível.
Yanzi [discípulo de
Confúcio] ficou famoso por manter-se reto, e Confúcio o elogiou por não cometer
o mesmo erro duas vezes. As mulheres, porém, podem cometer erros. Contudo, uma
mulher qualificada, digna, perspicaz e sábia pode alcançar a perfeição.
Se uma mulher viver em
harmonia com sua família, as críticas contra si serão silenciadas. Se ela vive
em discórdia com seu marido, isso se espalhará para fora de casa. Isso é
inevitável. O ‘Tratado das Mutações’[Yijing] diz: ‘Dois corações harmonizados
podem cortar ouro; palavras concordes exalam o perfume das orquídeas.’ Esse
ditado pode ser aplicado a harmonia no lar.
Uma nora e suas
cunhadas estão no mesmo nível de igualdade, e devem respeitar umas as outras.
Mesmo que não haja amor, suas relações devem ser apropriadas e íntimo o quanto
for possível. Somente as mulheres jovens, virtuosas, com porte, modestas e
respeitosas podem cumprir seus deveres, possuir afetos sinceros e estender seu
amor para manter firmes seus relacionamentos.
A virtude e a beleza de
uma nora se tornam assim conhecidas. Suas falhas e erros são relevados; seus
sogros a enaltecem; seu marido fica orgulhoso; sua virtude irradia pela
comunidade, seu brilho ilumina pai e mãe.
[Em alguns casos]
Cunhadas mais velhas podem ser grosseiras, e cunhadas mais novas podem ser
arrogantes. A arrogância destrói a harmonia da mulher com os outros. Quando o
amor e as relações apropriadas são pervertidas, como pode haver elogio e
reconhecimento?
Em tais casos, a
virtude de uma mulher fica oculta, e faltas lhe são imputadas. A sogra fica
raivosa, o marido fica indignado. A difamação se espalha dentro e fora da casa,
e a desgraça recai sobre a nora. Seu pai e mãe podem ser desonrados.
Por essa razão, tanto a
honra quanto a desgraça, a boa ou má reputação, dependem da extrema cautela de
uma mulher. Para conquistar o coração de cunhados e cunhadas, o melhor é a
modéstia e a condescendência. A modéstia é a base da virtude; a
condescendência, sua expressão mais refinada. Todas aquelas que possuem essas
duas características podem estar em harmonia com os outros. O ‘Clássico da
Poesia’ [Shijing] diz: ‘lá, [ela] não desgosta; aqui, [ela] não cansa’ [isto é,
modesta e condescendente].