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Zhuangzi

Com Zhuangzi (IV a.C.), a escola daoísta recebeu a adição de um incrível contador de histórias, que tornou o dao acessível aos leigos, deixou uma mensagem humanística profunda e surpreendeu a todos com sua sensibilidade, agudeza e humorismo. O texto de Zhuangzi não era menos profundo de que o de Laozi; mas sua maior virtude, talvez, tenha sido a de tornar a idéia do dao menos hermética, mais legível e compreensível, ilustrando-a com parábolas instrutivas e, muitas vezes, divertidas. Em seu livro são tratados os mais diversos temas, tais como a natureza, a condição do ser humano, o conhecimento, etc.


UMA EXCURSÃO FELIZ

No Oceano do Norte há um peixe, chamado k'un, não sei de quantas mil li de comprimento. Esse k'un se transforma num pássaro chamado p'eng. Suas costas têm não sei quantas mil li de largura. Quando se move, voando, as asas escurecem o céu como se fossem nuvens.

Quando viaja, essa ave o faz para o Oceano Sulino, o Lago Celestial. E no Registro das Maravilhas lemos que quando um p'eng voa para o sul, a água se agita numa extensão de três mil li ao redor, enquanto o próprio pássaro sobe num vendaval até a altura de noventa mil li para um vôo de seis meses de duração.

Subindo a essa altura nos ares, a ave vê as brancas neblinas moventes da primavera, as nuvens de poeira e as coisas vivas que exalam seus hálitos no meio delas. Imagina se o azul do céu será sua cor real ou apenas o resultado da distância sem fim e verifica que as coisas sobre a terra lhe parecem as mesmas.

Se não houver profundidade suficiente, a água não fará as grandes embarcações flutuarem. Derramem uma xícara d'água num buraco no pátio e tomem um grão de mostarda como barco. Experimentem fazer a xícara flutuar e ela afundará devido à desproporção entre a água e a embarcação.

O mesmo se dá com o ar. Se não houver profundidade suficiente, não será possível o ar suportar asas grandes. E quanto às desse pássaro, uma profundidade de noventa mil li é necessária para agüentá-las. Depois, deslizando sobre o vento com coisa alguma, exceto o céu límpido, sobre ele e sem obstáculos no caminho, inicia sua jornada para o sul.

Uma cigarra e uma pombinha riram, dizendo - "Ora, quando vôo com todas as minhas forças o máximo que consigo é voar de árvore em árvore. E muitas vezes não chego a meu destino, pois caio no chão em meio do vôo. Para que então é preciso subir noventa mil li para iniciar a viagem rumo ao sul?".

Quem vai para o campo levando três refeições consigo volta com o estômago tão cheio como na hora em que partiu. Mas quem viaja cem li deve levar arroz suficiente para o descanso de uma noite. E quem tem que percorrer mil li precisa fazer suprimento de provisões para três meses. Aquelas duas criaturinhas, o que sabiam elas?

O saber limitado não tem o alcance do saber profundo, do mesmo modo que uma vida curta não tem a mesma duração de uma longa. Como podemos afirmar que assim é? A planta do fungo, que dura uma manhã, não conhece a alteração do dia e da noite. A cigarra desconhece a mudança das estações de primavera e outono. Ambas têm vida curta. Porém, no sul de Chu, há o mingling (árvore) cuja floração e frutificação duram, cada uma, quinhentos anos. E antigamente havia uma árvore enorme cuja floração e frutificação duravam, cada uma, oito mil anos. Contudo, P'eng Tsu (1) tem renome por ter alcançado idade e é ainda, sim senhores! Objeto de inveja para todos!

Foi sobre esse assunto mesmo que o imperador T'ang (2) falou a Chi do seguinte modo - "Ao norte de Chiungta há o Mar Negro, o Lago Celestial. Nele vive um peixe de várias mil li de largura e não sei quantas de comprimento. Seu nome é k'un. Há também uma ave, chamada p'eng com as costas como a do Monte Tai e asas como nuvens que obscurecessem os céus. Ela voa rapidamente em redemoinho à altura de noventa mil li, bem acima da região das nuvens, tendo apenas o céu límpido sobre ela. E em seguida dirige o vôo para o Oceano Sulino.

- E um pardal lacustre riu e disse - "Por favor, digam-me o que aquela criatura pode estar fazendo? Eu me ergo apenas a alguns metros no ar e torno a pousar depois de ter voado em círculo por entre os caniços. É o máximo que alguém pode desejar voar. Ora, para onde pode dirigir-se essa ave? "

- Tal é, na verdade, a diferença entre o pequeno e o grande. Tome, por exemplo, um homem que preencha suas funções devidamente num pequeno escritório, ou cuja influência se faz sentir sobre uma aldeola, ou cujo caráter agrade a determinado príncipe. A opinião que faz de si mesmo será a mesma que a do pardal lacustre. O filósofo Yung, de Sung, rir-se-ia de tal homem. Se o mundo inteiro o lisonjeasse, ele não se deixaria impressionar, tampouco deixar-se-ia dissuadir do que pretendia fazer se o mundo todo o censurasse. Pois Yung é capaz de distinguir a essência da superficialidade e compreende o que é verdadeira honra e vergonha. Tais homens são raros numa geração. Porém, nem mesmo ele consegue firmar sua reputação.

Ora, Liehtse (3) podia cavalgar sobre o vento alegremente na brisa fresca assim andaria durante quinze dias antes de voltar. Entre os mortais que atingem a felicidade, um tal homem é raro. Entretanto, embora Liehtse pudesse dispensar de caminhar, ainda assim dependia de determinada coisa (4). Quanto àquele que vai de carro em eterna conformidade com o Céu e a Terra, dirigindo adiante de si os elementos mudáveis, como sua parelha, para errar através dos reinos do Infinito, de que, então, teria esse alguém necessidade de depender?

Assim diz-se - "O homem perfeito ignora-se a si mesmo; o homem divino ignora a recompensa do valor; o verdadeiro Sábio ignora a reputação".

* * *

O Imperador Yao (5) desejava abdicar a favor de Hsü Yo, dizendo - Se, quando o sol e a lua estivessem brilhando, acendesse-se a tocha, não seria difícil sobressair a luz dessa última? Se, quando a chuva está caindo, alguém continuar a regar os campos, não seria tal coisa um desperdício de trabalho? Ora, se você quisesse assumir as rédeas do governo, o império seria bem governado e, no entanto, eu estou preenchendo esse cargo. Tenho pleno conhecimento de minhas próprias deficiências e pretendo oferecer-lhe o Império."

- "Está regendo o Império e o Império está sendo bem governado", replicou Hsü Yu. "Por que razão devo tomar seu lugar? Deverei fazê-lo por amor a um nome? Um nome não passa da sombra da realidade e deverei preocupar-me por causa da sombra? O melharuco, construindo o ninho na imponente floresta, ocupa apenas um ramo pequeno. O castor sacia sua sede no rio, porém, bebe apenas o suficiente para encher o estômago. Prefiro ficar em segundo plano: não serei útil ao império! Se o cozinheiro não for capaz de preparar os sacrifícios de funeral, o representante do espírito a quem prestam homenagem e o encarregado das preces não devem interferir nos vinhos e nas carnes e prepará-los para ele".

Chien Wü disse a Lien Shu - "Ouvi Chieh Wü falar sobre assuntos transcendentes e delicados sem esgotar-se. Fiquei muito admirado ouvindo o que ele dizia porque suas palavras pareciam intermináveis como a Via Látea, mas eram completamente diferentes das que tiramos de nossa experiência comum".

- "Que disse ele? Indagou Lien Shu".

- "Ele afirmou", retorquiu Chien Wü, "que na montanha Miao - ku - yi vive um teólogo cuja pele é branca como gelo ou neve, cuja graça e elegância se assemelham às de uma virgem, que não come cereal algum, mas vive de ar e orvalho, e que, cavalgando as nuvens sobre dragões alados, vagueia pelos ares passando os limites das regiões mortais. Quando seu espírito gravita pode impedir a corrupção de todas as coisas e trazer boas colheitas. Eis o que eu chamo absurdo e não creio nele".

- "Bem", observou Lien Shu, "não se pergunta a um cego qual sua opinião a respeito de um belo desenho, nem se convida um surdo para um concerto. E a cegueira e a surdez não são apenas defeitos físicos. Há a cegueira e a surdez do espírito. Suas palavras são como uma virgem inocente. A boa influência de um tal homem com um tal caráter faz-se sentir sobre toda a criação. Entretanto, devido ao fato de uma geração miserável pedir em altos brados a reforma, você vê-lo-ia ocupar-se com os detalhes de um império!"

- "As existências objetivas não lhe podem fazer mal. Numa inundação que chegasse aos céus ele não seria submerso. Numa seca, embora os metais corressem líquidos e as montanhas ficassem ressequidas, ele não sentiria calor. Com esse mesmo barro e peneira você poderia talhar dois homens tais como Yao e Shun (6). E vê-lo-ia ocupar-se com objetivos!"

* * *

Um homem do Estado Sung carregava alguns barretes de cerimônia para vender entre os da tribo de Yueh. Porém, os homens de Yueh costumavam cortar fora os cabelos e pintar os corpos de modo que não se utilizavam daqueles objetos. O imperador Yao governava tudo o que havia sob os céus e dirigia os negócios de toda a região. Depois de ter ido visitar os quatros sábios da Montanha Miao - ku - yi sentiu, ao voltar para sua capital, em Fenyang, que o império não mais existia para ele.

* * *

Hueitse (7) disse a Chuangtse - "O Príncipe de Wei deu-me a semente de uma espécie de cabaça enorme. Eu a plantei e deu frutos com a capacidade de uma medida de cinco fangas. Ora, se eu tivesse usado esses frutos para guardar líquidos teriam ficado pesados demais para que se pudessem carregar; e se eu tivesse cortado ao meio para outra espécie de recipiente, eles ficariam muito rasos para servirem. Certamente era uma coisa enorme, mas não os achei úteis e por isso os quebrei".

- "Acho que era antes você que não sabia usar recipientes assim grandes", replicou Chuangtse. "Havia um homem de Sung que tinha uma receita para uma pomada boa para mãos gretadas, devido ao fato de sua família ter sido de lavadores - de - seda durante gerações. Um desconhecido que ouvira falar nisso foi procurá-lo e ofereceu-lhe cem onças de prata pela receita; diante disso, ele chamou todos os homens de suas família e disse -"Jamais fizemos muito dinheiro nesse ofício de lavar sedas. Ora, podemos vender agora a receita e ganhar cem onças num só dia. Façamos o que nos propõe o desconhecido."

O desconhecido obteve a receita e foi tratar de obter uma entrevista com o Príncipe de Wu. O Estado de Yüeh estava em guerra e o Príncipe de Wu mandou um general para travar uma batalha naval com Yüeh no começo do inverno. Esse último foi completamente derrotado e o desconhecido recebeu como recompensa uma parte do território do rei. Assim, posto que a eficácia do bálsamo para curar mãos gretadas fosse, em ambos os casos, a mesma, sua aplicação foi diferente. Num caso, assegurou um título; noutro, continuaram como lavadores de seda.

- "Ora, quanto a essa sua cabaça de capacidade de cinco fangas, por que não fez uma embarcação com ela e não a pôs flutuando pelo rio e pelo lago? E você a queixar-se de ser a cabaça grande demais para guardar coisas! Receio que seu crânio esteja cheio de palha".

* * *

Hueitse disse a Chuangtse - "Tenho uma árvore enorme chamada ailanto. Seu tronco é tão irregular e cheio de nós que não serve para pranchas; quanto aos galhos são tão emaranhados que não podem ser cortados em discos ou tábuas. Cresce nas margens da estrada, mas nenhum carpinteiro lhe dará atenção. Suas palavras se assemelham a essa árvore - enormes e inúteis, de nada valendo para o mundo".

- "Por acaso nunca viu um gato selvagem", volveu Chuangtse, "abaixado à espera da prêsa? Para a direita e para a esquerda, para cima e para baixo, saltando daqui para ali até que cai numa armadilha ou morre num laço. Além disso, há o iaque com aquele enorme corpanzil. Temos que admitir que é bem grande ele, porém não pode pegar camundongos. Ora, se você possui uma árvore bem grande e não sabe o que fazer com ela, porque não a planta na Aldeia de Em - Alguma - Parte, no meio das grandes florestas, onde possa passar o tempo preguiçosamente e jazer em ditoso descanso debaixo de sua sombra? Ali ela ficará livre do machado e de toda e qualquer injúria. Se não tem utilidade para os outros, qual o motivo para preocupações?".



IGUALANDO TODAS AS COISAS

TSECH'I, DE NANKUO, estava sentado e reclinado sobre uma mesa baixa. Erguendo os olhos para o céu, suspirou com olhar abstrato.

Yench'eng Tseyu, que estava de pé perto dele, exclamou:

- "Em que está pensando para que seu corpo tenha ficado como lenho morto e o espírito se pareça com cinzas de fogo extinto? Certamente o homem que agora mesmo estava reclinado sobre a mesa não é o mesmo que aí está - "Meu amigo", replicou Tsech'i, "sua pergunta vem a calhar. Hoje perdi meu Eu... Compreende? Talvez conheça apenas a música dos homens e não a da Terra. Ou mesmo que tenha ouvido a música da Terra talvez não tenha ouvido a do céu.

"Explique-se, por favor", pediu Tseyu.

- "O hálito do universo", continuou Tsech'i, chama-se vento. Às vezes fica inativo. Porém, quando ativo, todas as fendas assobiam ante sua fúria. Por acaso jamais ouviu esse tumulto ensurdecedor?

- "As tavernas e os fossos das colinas e florestas, as cavidades em enormes árvores de muitos palmos de circunferência - algumas como narinas e outras como bocas, outras ainda como orelhas... E o vento por elas entra com violência, como torrentes em redemoinho ou setas sibilantes, bramindo, com fúria, gorgolejando, gemendo, clamando, sussurrando, assobiando por um lado e ecoando no outro, agora suave com o ar fresco, em seguida violento com o redemoinho de vento, até que a tempestade passe e reine supremo o silêncio. Por acaso nunca reparou como as árvores e os objetos se sacodem e tremem, emaranham os galhos e se contorcem todas?"

- "Bem, então", indagou Tseyu, "já que a música da Terra é feita com cavidades e aberturas, e a do homem com flautas e gaitas, de que é feita a música do Céu?"

-- "O efeito do vento nas várias fendas", replicou Tsech'i, "não é uniforme, porém os sons produzidos variam de acordo com sua capacidade individual. Quem é que lhes agita os hálitos?".

-- "A grande sabedoria é generosa; a sabedoria mesquinha gosta de disputa. Os discursos virtuosos são desapaixonados, os pequenos, desagradáveis."

- "Pois ainda que a alma esteja presa ao sono, ou mesmo acordada, enquanto o corpo se move, nós nos empenhamos e lutamos, com as coisas que nos cercam. Algumas são fáceis de resolver e são comodamente aquietadas, algumas são profundas e dissimuladas, e outras misteriosas. Ora, somos presa de pequenos terrores, depois perdemos a coragem e desmaiamos devido a algum enorme terror. Ora, o espírito voa longe, como a flecha desferida pelo arco, para ser o árbitro do que está direito e do que está errado. Ora fica para trás, como se tivesse prestado um juramento, para prender-se ao que defende. Em seguida, como sob a geada do outono e do inverno, vem a queda gradual, e submerso em suas próprias ocupações continua a seguir o curso sem voltar jamais. Finalmente esgotado e aprisionado, seco como a água de uma velha sarjeta e decadente, jamais verá de novo a luz (8).

-"Alegria e cólera, tristeza e felicidade, aborrecimento e arrependimento, indecisões e receios, vêm-nos por turnos, sempre com apresentações diferentes, tal como a música que sai dos orifícios ou como cogumelos que brotam na umidade. Dia e noite alteram-se em nós, mas não sabemos como nascem. Ai de nós! Ai de nós! Poderemos por uma só vez pôr o dedo sobre a verdadeira Causa?".

-"Mas não estarei para essas emoções. Contudo, com exceção de mim mesmo, não haverá ninguém para senti-las. Até ai chegamos, porém não sabemos em que ordem vêm à cena. Parece que há uma alma (9); mas o principal para sua existência é querer. Que funciona é bem crível, embora não possamos ver-lhe a forma. Talvez tenha realidade interior, sem forma externa.

- "Considere o corpo humano com sua centena de ossos, as nove cavidades externas e os seis órgãos internos, tudo completo. Qual dessas partes prefere? Por acaso não gosta de todas igualmente, ou tem sua preferência? Esses órgãos prestam serviço de servos a mais alguém? Desde que os servos não se governam, servirão eles de senhores e servos por turnos? É inegável que existe uma alma para controlá-los".

- "Porém, tenhamos ou não fixado a verdadeira natureza dessa alma, isso é coisa que pouco interessa à própria alma. Pois, uma vez tomando conta da forma material, prossegue em seu curso até exaurir-se. Consumir-se nos trabalhos e nos pesares da vida e ser arrastada sem possibilidade de parar em caminho - não é digna de pena? Trabalhar sem cessar a vida toda e depois, sem viver para colher os frutos, esgotada pelo labor, partir para não se sabe onde - não é uma razão para pesar?".

- "Os homens afirmam que não há morte - de que adianta isso? O corpo se decompõe e o espírito desaparece com ele. Não é motivo para tristeza? O mundo pode ser tão estúpido a ponto de não perceber isso? Ou serei eu somente o estúpido e os outros não?"

* * *

Ora, se devemos guiar-nos pelos nossos preconceitos, quem ficaria sem um guia? Que necessidade haveria de fazer comparações sobre o que está certo e errado nos outros? E se alguém deve seguir o próprio julgamento de acordo com os seus preconceitos, até os loucos os têm! Mas formar julgamento do que está direito e errado sem primeiro ter uma opinião é o mesmo que dizer - "Parti para Yüeh hoje e cheguei lá ontem". Ou, é o mesmo que afirmar que algo que não existe, existe. As (ilusões de) afirmar algo que não existe, como existente, não podem ser alcançadas nem pelo teólogo Yü; e nós muito menos poderemos penetrar.

Porque a palavra não é simples sopro de hálito. Ela foi criada para dizer algo, apenas não se pode determinar o que dizer. Há, na verdade, palavra, ou não há? Podemos ou não podemos distinguí-la do chilreio dos filhotes de pássaros?

Como Tao pôde ser tão obscuro de modo que precisa haver a distinção do verdadeiro e do falso? E como a palavra pode ser tão obscura de modo que precisa haver uma distinção entre o direito e o errado (10)? Onde você pode ir e achar que Tao não existe? Onde você pode ir e achar que as palavras não podem ser provadas? Tao não pode ser apreendido perfeitamente por nossa compreensão inadequada, e as palavras não se patenteiam perfeitamente devido às expressões floreadas. Daí as afirmativas e negativas das escolas de Confúcio e de Motse (11), cada qual negando o que a outra afirma e afirmando o que a outra nega. Cada qual negando o que a outra afirma e afirmando o que a outra nega, só nos pode redundar em confusão.

Não há nada que não seja "isto"; não há nada que não seja "aquilo". O que não pode ser visto por "aquilo", (a outra pessoa) pode ser compreendido por mim. Daí eu digo, "isto" emana "daquilo"; "aquilo" também deriva "disto". Esta é a teoria da interdependência "disto" e "daquilo" (relatividade dos padrões).

Não obstante, a vida decorre da morte, e vice-versa. A possibilidade decorre da impossibilidade, e vice-versa. A afirmação baseia-se na negação, e vice-versa. Sendo esse o caso, o verdadeiro sábio rejeita todas as distinções e refugia-se no Céu (Natureza). Pois alguém pode baseá-las sobre "isto", embora "isto" seja também "aquilo" e "aquilo" seja também "isto". "Isto", outrossim, tem seus "direitos" e "errados", e "aquilo" também tem seus "direitos" e "errados". Então existe realmente, ou não, a distinção entre "isto" e "aquilo"? Quando "isto" (subjetivo) e "aquilo" (objetivo) são ambos sem seus correlatos, esse é o verdadeiro "Eixo de Tao". E quando esse Eixo passa através o centro para o qual o Infinito converge, as afirmações e as negações confundem-se igualmente no infinito Único. Daí se diz que não há nada como usar a Luz.

Tomar um dedo como prova de que um dedo não é um dedo não é tão bom como tomar qualquer coisa que não seja um dedo para provar que um dedo não e um dedo. Tomar um cavalo como prova de que um cavalo não é um cavalo não é tão bom como tomar algo que não seja um cavalo para demonstrar que um cavalo não e um cavalo (12). O mesmo se dá com o universo que não é nem dedo nem cavalo. O possível é possível: o impossível é impossível. Tao trabalha e o resultado obtido é o seguinte; as coisas recebem nomes e afirma-se serem o que são. Por que são assim? Porque se afirma serem como são! Por que não são de outro modo? Afirma-se não serem assim! As coisas são assim por si mesmas e têm possibilidades por si próprias. Não existe nada que não seja de certo modo e não existe nada que não possa ser de certo modo.

Por conseguinte tome, por exemplo, um galho novo e uma coluna, ou uma pessoa feia e uma grande beleza e tudo o que for estranho e monstruoso. Tudo isso é igualado por Tao. A divisão é o mesmo que criação; a criação é o mesmo que destruição. Não há uma criação ou uma destruição, porque essas condições são novamente igualadas numa Única.

Somente os verdadeiros sábios compreendem esse principio de igualar todas as coisas numa Única. Descartam-se das distinções e se refugiam nas coisas comuns e ordinárias. As coisas comuns e ordinárias servem a certas funções e, portanto, conservam a integridade da natureza. Partindo dessa integridade, uma pessoa compreende, e da compreensão chega a Tao. Aí pára. Parar sem saber como pára - eis Tao.

Mas cansar o intelecto numa ligação obstinada com a individualidade das coisas, não reconhecer o fato de que todas as coisas são uma Única - chama-se a isso "Três pela Manhã". O que é "Três pela Manhã?" Um tratador de macacos disse a respeito das rações de nozes, que cada macaco devia comer três nozes pela manhã e quatro à noite. Desse modo os macacos ficavam com muita fome. Então o tratador resolveu que eles poderiam ter quatro nozes pela manhã e três à noite e com esse arranjo todos ficaram satisfeitos. O numero de nozes continuou a ser o mesmo, porém havia uma diferença devida a (avaliação subjetiva de) gostos e aversões. Isso também deriva disto (princípio de subjetividade). Por conseqüência, o verdadeiro Sábio reúne todas as coisas diferentes e descansa no natural Equilíbrio do Céu. A isto se chama (o principio de seguir dois cursos, de uma vez).

O conhecimento dos homens antigos tinha um limite. Qual era esse limite? Ele remontava a um período em que a matéria não existia. Era a esse ponto extremo que chegava seu saber. O segundo período era o da matéria, porém de matéria sem condição (indefinido). A terceira época viu a matéria com condição (definido), mas ainda se desconhecia o que foi depois julgado verdadeiro ou falso. Quando esses apareceram, Tao começou a declinar. E com o declínio de Tao surgiu o fim individual (subjetividade).

Além disso, Tao teria realmente chegado ao apogeu e declinado (13)? No mundo da (aparente) ascensão e do declínio, o famoso músico Chao Wen tocava realmente instrumento de corda; mas a respeito do mundo sem ascensão e declínio, Chao Wen não tocara mesmo o instrumento de corda. Quando Chao Wen deixou de tocar instrumento de corda, Shih K'uang, (mestre de música) abandonou a vareta do tambor (para ganhar tempo) e Hueitse (o sofista) deixou de argumentar, todos eles compreendiam a chegada de Tao. Esses homens eram os melhores nas respectivas artes e, portanto, legaram seus nomes à posteridade. Cada um deles adorava sua arte e ansiava por exceder os próprios méritos. E devido ao fato de amarem a arte, desejavam que os demais a conhecessem. Todavia estavam tentando ensinar o que (em sua natureza) não podia ser compreendido. Por conseqüência, (Hueitse) acabou nas obscuras discussões do "difícil' e "branco"; e o filho de Chao Wen tentou aprender a tocar o instrumento de corda durante toda sua vida sem consegui-lo. Se se pode chamar a isso sucesso, então eu também o obtive. Mas se nenhum deles pode ser considerado como tendo sido bem sucedido, então, nem eu nem outros obtivemos êxito. Por conseguinte, o verdadeiro Sábio foge da luz que o deslumbra e se refugia no comum e no ordinário. Por esse meio chega à compreensão.

Suponhamos que haja uma afirmativa. Não sabemos se pertence a uma categoria ou a outra. Mas se reunirmos as diferentes categorias numa única, então, as diferenças de categorias deixam de existir. Devo explicar, entretanto. Se houver um começo, então houve uma época antes desse começo, e uma época antes da época que ficava antes da do começo. Se há uma existência, deve ter havido uma não-existência. E se houve um tempo em que nada existia, então deve ter havido uma época em que nem mesmo o nada existiu. O nada veio a existir repentinamente. Alguém pode dizer realmente se pertence à categoria da existência ou da não-existência? Até mesmo as palavras que acabo de proferir - não posso dizer se significam, ou não, alguma coisa.

Sob o pálio do céu não há nada maior do que o comprimento da penugem de um pássaro no outono ao passo que a Montanha Tai é pequena. Tampouco há vida mais longa do que a da criança ceifada pela morte na infância, enquanto o próprio P'eng Tsu morreu jovem. O universo e eu viemos à existência juntos; eu e tudo que existe somos uma Única coisa.

Se, pois, todas as coisas, são uma Única, qual o lugar para a palavra? De outro lado, desde que eu posso dizer a palavra "única", como a palavra pode não existir? Se existe mesmo, temos Única e a palavra - dois; e dois e um - três (14), desse ponto em diante até os melhores matemáticos deixam de alcançar (o derradeiro); então as pessoas comuns? Falhariam muito mais?

Daí, se de nada se pode chegar a alguma coisa, e subseqüentemente a três, segue-se que será ainda mais fácil se se partir de algo. Desde que não se pode prosseguir, para-se aí.

Ora, Tao pela sua natureza mesmo jamais pode ser definido. A palavra por sua natureza mesmo não pode exprimir o absoluto. Daí surgem as distinções. Essas distinções são: "direito" e "esquerdo", "parentesco" e "dever", "divisão" e "discriminação", "rivalidade" e "esforço". São os chamados Oito Predicados.

Além dos limites do mundo externo, o Sábio reconhece que existe, mas não fala sobre o assunto. Dentro dos limites do mundo externo, o Sábio fala, mas não comenta. Com respeito à sabedoria dos antigos, como incorporada no cânon de "Primavera e Outono", o Sábio comenta, mas não interpreta. E assim, entre as distinções feitas, existem distinções que não podem ser feitas; entre as coisas interpretadas existem coisas que não podem ser interpretadas.

Como pode ser? Pergunta-se. O verdadeiro Sábio guarda seu conhecimento para si, enquanto os homens, em geral, citam o seu em argumentos, com o fito de convencerem-se uns aos outros. E, portanto, se diz que aquele que argumenta assim o faz porque não pode ver determinados pontos.

Ora, o Tao perfeito não pode receber um nome. Um argumento perfeito não emprega palavras. A bondade perfeita não se preocupa com (atos individuais de) bondade (15). A integridade perfeita não é ponto de crítica para outros (16). A coragem perfeita não se arremessa para diante.

Porque o Tao que se manifesta não é Tao. A palavra que argumenta fica longe do seu alvo. A bondade que tem objetivos fixos, perde seu escopo. A integridade que é óbvia não é acreditada. A coragem que se atira para diante, jamais completa coisa nenhuma. Esses cinco são, como foram, círculos (suave) com forte propensão para a quadratura (violência). Por conseguinte. o saber que pára naquilo que não sabe é o mais alto saber.

Quem conhece o argumento que não pode ser argüido sem palavras, e o Tao que não se declara Tao? Aquele que sabe isso pode afirmar-se que entrará no reino espiritual (17). Sendo enchido sem ficar cheio e esvaziado sem ficar vazio, sem saber como foi feito isso - eis a arte de "Ocultar a Luz".

* * *

Há muito o imperador Yao dizia a Shun - "Ainda hei de arruinar os Tsungs, e os Kueis e os Hsü - aos. Desde que subi ao trono essa questão tem me preocupado. O que pensa a respeito?"

- "Esses três Estados", replicou Shun, "ficam em regiões selvagens e pouco adiantadas. Por que não afasta esse pensamento da idéia? Uma vez, dez sóis saíram juntos e todas as coisas se iluminaram desse modo. De que grandeza seria o poder da virtude capaz de sobrepujar os sóis?"

Yeh Ch'üen perguntou a Wang Yi - "Sabe, com certeza, se todas as coisas são iguais?"

- "Como posso saber?" Volveu Wang Yi.

- "Você sabe o que não sabe?"

- "Como posso saber?" Tornou Yeh Ch'üeh.

- "Mas então ninguém sabe?"

- "Como posso saber?" Disse Wang Yi. "Não obstante, procurarei explicar-me. Como se pode saber que o que eu chamo "saber" não é realmente saber e o que eu chamo de "não saber" não é realmente não saber? Agora eu lhe farei uma pergunta - Se um homem dorme num lugar úmido, fica com lumbago e morre. Mas o que me diz de uma enguia? Viver no cimo das árvores é vida precária e mexe com os nervos. Mas o que me diz dos macacos? Qual o "habitat" indicado para a enguia, o macaco e o homem? Qual o perfeitamente certo? Os seres humanos se nutrem de carne, os veados de ervas, as centopéias de pequenas cobras, as corujas e os corvos de camundongos. desses quatro, qual o que tem, absolutamente, o gosto perfeito? O macaco une-se com a fêmea que tem cabeça parecida com a do cão, o gamo com a gazela, a enguia com os peixes, enquanto os homens admiram Mao Chiang e Li Chi, à vista de quem os peixes mergulham profundamente n'água, os pássaros alçam vôo alto no ar e os veados fogem correndo. Contudo, quem diria qual o perfeito padrão de beleza? Em minha opinião, as doutrinas de humanidade e justiça e os caminhos do direito e do erro são tão confusos que é impossível conhecer o que contêm".

- "Se você então", tornou Yeh Ch'üeh, "não sabe o que é bom e mau, o Homem Perfeito igualmente não tem esse conhecimento?"

- "O Homem Perfeito", retrucou Wang Yi, "é um ser espiritual. Mesmo que o oceano borbulhe sob o sol, ele não se sente quente. Mesmo que os grandes rios se congelem, não sentem frio. Mesmo que as montanhas se partam por efeito do raio e suas enormes profundezas se revirem por efeito da tempestade, ela não tremerá de medo. Assim, subirá acima das nuvens do céu e guiando o sol e a lua adiante, passará além dos limites da existência mundana. A morte e a vida não lhe oferecem mais vitórias. Como, ainda menos, preocupar-se-á com a distinção entre lucro e perda?"

* * *

Chü Ch'ao dirigiu-se a Ch'ang Wutse do seguinte modo - "Ouvi Confúcio dizer: O verdadeiro Sábio não presta atenção aos negócios deste mundo. Ele nem procura o ganho nem evita as perdas. Nada pede das mãos dos homens e não adere às rígidas regras de conduta. Algumas vezes diz algo sem falar, e outras, fala sem nada dizer. E assim paira além dos limites do mundo dos homens. Isso, comenta Confúcio, são fantasias fúteis. Mas para mim são a personificação do Tao mais maravilhoso. Qual é sua opinião?"

- "São fatos que deixarão perplexo até o Imperador Amarelo", replicou Ch'ang Wutse. "Como saberia Confúcio? Você está se adiantando muito. Quando vê o ovo de uma galinha, na verdade espera ouvir o galo cantar. Quando vê uma funda, na verdade espera ter pombo assado. Dir-lhe-ei algumas palavras a exemplo e ouvi-las-á do mesmo modo".

- "Como o Sábio se senta ao sol e à luz e conserva nas mãos o universo? Reúne tudo num todo harmonioso rejeitando a confusão disto e daquilo. Título e precedência, coisas que o homem vulgar cultiva cuidadosamente, o Sábio totalmente ignora, amalgamando as disparidades de dez mil anos numa matéria pura. O próprio universo, também, conserva e mistura tudo do mesmo modo".

- "Como sei que o amor da vida não é uma ilusão? Como sei que aquele que teme a morte não é uma criança que se perdeu em caminho e que não sabe voltar à casa?"

- "A senhora Li Chi era filha do oficial de Ai. Quando o Duque de Chin a quis tomar para si, ela chorou até que o corpete de seu vestido ficou ensopado de lágrimas. Porém, quando chegou à residência real, partilhou o luxuoso leito do duque e comeu finas iguarias, arrependeu-se de ter chorado. Como então poderei saber que o que morre pode se arrepender de se ter agarrado tanto à vida anterior?"

- "Os que sonham com o festim, acordam para os lamentos e os pesares. Os que sonham com os lamentos e os pesares acordam para reunir-se aos que vão caçar. Enquanto sonham, não sabem que estão sonhando. Alguns até interpretarão o sonho mesmo que estavam tendo; e apenas quando acordam compreendem que fora um sonho. Pouco a pouco aproximam-nos do grande despertar e então verificamos que esta vida foi realmente um grande sonho. Os tolos pensam que estão acordados agora e ficam convencidos de que tudo sabem - este é um príncipe e aquele é um pastor. Que estreiteza de espírito! Confúcio e você são ambos sonhos; e eu que afirmo que são sonhos - eu não passo de um sonho também. É um paradoxo. Amanhã um Sábio talvez se erga para explicar isso; mas amanha não virá senão depois que se tiverem passado dez mil gerações. Contudo talvez você o encontre ao dobrar a esquina".

- "Suponhamos que você e eu discutamos. Se você levar a melhor, e eu não conseguir argumentos melhores, é você, necessariamente, quem tem razão e eu estou errado? Ou se eu levar a melhor, e não você, sou eu, necessariamente quem tem razão e você está errado? Ou ambos teremos razão em parte e estamos errados em parte? Ou ambos estamos completamente certos e completamente errados? Você e eu não podemos sabê-lo e portanto vivemos todos nas trevas.

- "A quem chamaremos para árbitro nessa questão? Se eu pedir a alguém que tenha a sua opinião, para servir de juiz, ele ficará de seu lado. O que adiantará um tal juiz entre nós? Se eu pedir opinião de alguém que tenha o meu ponto de vista, ele ficará de meu lado. O que nos adianta um tal árbitro? Se eu chamar alguém cujas opiniões sejam diferentes das nossas, ele, igualmente, ficará em situação de não poder decidir entre nós, já que difere de ambos. E se eu chamar alguém que concorde com os dois, também ficará em situação de não poder decidir, já que concorda com ambos. Desde que você e eu, e outros homens, não podemos decidir, como podemos depender um do outro? As palavras dos argumentos são todas relativas; se nós queremos alcançar o absoluto precisamos harmonizá-los por intermédio da unidade de Deus e seguir sua evolução natural de modo que possamos completar a duração de vida que nos foi concedida".

- "Mas o que é harmonizá-los por meio da unidade de Deus? É isso. O direito pode não ser realmente direito. O que parece assim pode não sê-lo realmente. Mesmo que o que é direito seja realmente direito. Mesmo que o que aparece onde difere do que não o é, também não pode ser evidenciado por argumento".

- "Não repare no tempo. Nem no direito, nem no errado. Passando para dentro do reino do Infinito faça seu repouso final lá".

A Penumbra disse à Sombra. - "Você se move agora; daqui a pouco fica parada. Ora, se senta, daqui a pouco levanta-se. Por que essa instabilidade?" - "Talvez eu dependa," replicou a Sombra, "de algo que me faça fazer o que faço; e talvez que essa coisa dependa, por sua vez, de outra que a obriga a fazer o que faz. Ou talvez minha dependência seja como (movimento inconsciente) as escamas de uma serpente ou as asas de uma cigarra. Como posso dizer porque faço uma coisa ou porque não faço outra?"

* * *

Certa vez eu, Chuang Chou (18), sonhei que era uma borboleta, adejando daqui para acolá, com todos os fins e propósitos de uma borboleta. Só tinha consciência de minha felicidade como borboleta sem saber que eu era Chou. Depressa acordei e ali estava eu, eu mesmo, na verdade. Agora não sei se eu era um homem sonhando ser borboleta, ou se eu sou uma borboleta sonhando ser um homem. Entre um homem e uma borboleta há, naturalmente, uma distinção. A transição é chamada transformação de coisas materiais (19).



A PRESERVAÇÃO DA VIDA

A vida humana é limitada, mas a ciência é ilimitada. Obrigar o limitado a seguir em busca do ilimitado é fatal; e supor que alguém sabe realmente é bem fatal, na verdade!

Ao praticar o bem, evite a fama. Ao fazer o mal, fuja da desgraça. Como princípio, siga um termo médio. Assim preservará seu corpo do mal, guardará a vida, preencherá os deveres para com seus pais e viverá o tempo de vida que lhe tinha sido concedido.

* * *

O cozinheiro do Príncipe Huei estava partindo um bezerro. Cada golpe de sua mão, cada erguer de ombros, cada passo de seus pés, cada movimento de joelho, cada pedaço de carne rasgada, cada golpe do facão estavam em ritmo perfeito - tal como a dança da "Alameda das Amoreiras", tal como os acordes harmoniosos de "Ching Shou".

- "Muito bem!" Bradou o príncipe. "É bem hábil na verdade!"

- "Senhor, replicou o cozinheiro descansando o facão, "sempre me devotei a Tao que é mais sublime do que a simples perícia. Quando comecei a retalhar bezerros, via diante de mim bezerros inteiros. Após três anos de prática, não mais via os animais inteiros. E agora trabalho com minha inteligência e não com meus olhos. Minha mente trabalha sem parar, sem o controle dos sentidos. Recaindo nos princípios eternos, vou resvalando pelas grandes juntas, ou cavidades, como se apresentam, obedecendo à constituição do animal. Nem chego a tocar nas ligações do músculo e do tendão e muito menos tento cortar os grandes ossos.

- "Um bom cozinheiro substitui o facão uma vez por ano - porque sabe cortar. Um cozinheiro ordinário, uma vez por mês - porque só sabe picar. Mas tenho usado esse facão durante dezenove anos e embora tenha retalhado muitos milhares de bezerros, o fio se mantém tão aguçado como se tivesse sido amolado agora mesmo. Pois nas juntas sempre existem interstícios e o fio de um facão, quase sem espessura, basta inseri-lo nos interstícios. Na verdade, há muito onde usar a lâmina. Foi assim que consegui conservar meu facão durante dezenove anos com o fio igual ao dos que acabam de passar pela pedra de amolar. Não obstante, quando deparo com uma parte dura que é difícil de cortar tomo todas as precauções. Fixando os olhos sobre ela, apoio a mão e delicadamente me utilizo da lâmina até que com um pequeno movimento essa parte ceda como terra que se desmorona. Em seguida, tiro o facão e, de pé, lanço os olhos em redor fazendo uma pausa com ar de triunfo. Depois limpo meu facão e o ponho cuidadosamente de lado".

- "Bravo!" Bradou o príncipe. "Pelas palavras desse cozinheiro aprendi como cuidar de minha vida."

* * *

Quando Hsien, da família Kungwen, avistou certo oficial, ficou horrorizado e disse - "Quem é aquele homem? O que lhe aconteceu para perder uma perna? Foi trabalho de Deus, ou do homem?"

- "Ora, naturalmente, é trabalho de Deus e não do homem," foi a réplica. "Deus fez esse homem com uma só perna. O aspecto dos homens é sempre equilibrado. Por aí se torna claro que foi Deus e não o homem que o fez assim".

Um faisão dos pântanos pode ser obrigado a dar dez passos para pegar alimento, cem para beber. Ainda assim, os faisões não querem ser alimentados numa gaiola. Pois, embora possam ter menos preocupações, não gostariam de tal vida.

* * *

Quando Laotse morreu, Ch'in Yi foi ao funeral. Soltou três gritos de dor e saiu.

Um discípulo dirigiu-se a ele perguntando - "Você não era amigo de nosso Mestre?"

- "Era", replicou Ch'in Yi.

- "Assim sendo, acha que foi suficiente sua expressão de pesar pela sua morte?", tornou o discípulo.

- "Acho", respondeu Ch'in Yi. "Estive pensando que ele era homem (mortal), porém agora sei que não era. Quando cheguei para os pêsames, encontrei pessoas de idade que choravam como chorariam pelos filhos, jovens que se lastimavam como se tivessem perdido as mães. Quando essas pessoas se encontraram deviam ter dito palavras sobre o acontecimento e derramado lágrimas sem intenção alguma. (Chorar assim pela morte de alguém) é fugir dos princípios naturais (de vida e morte) e aumentar o apego humano, esquecendo-se da fonte da qual recebemos esta vida. Os antigos chamavam a isto "fugir à retribuição do Céu". O mestre veio porque tinha chegado a hora de nascer, partiu porque chegou o tempo de partir. Os que aceitam o curso natural e a seqüência das coisas e vivem em obediência a eles estão acima da alegria e dos pesares. Os antigos falavam disto como a emancipação da escravatura. Os dedos podem não ser capazes de fornecer todo o combustível, porém o fogo é transmitido e nós não sabemos quando terminará."



ESTE MUNDO DOS HOMENS

Yen Huei (20) foi despedir-se de Confúcio - "Para onde se destina?" perguntou-lhe o Mestre.

- "Parto para o Estado de Wei," foi a resposta.

- "E o que se propõe fazer lá?" - continuou Confúcio.

- "Ouvi dizer,"volveu Yen Huei, "que o Príncipe de Wei é de idade madura, mas é intratável. Porta-se como se o povo não merecesse consideração e não quer reconhecer os próprios defeitos. Menospreza as vidas humanas e o povo morre; seus corpos jazem insepultos como as ervas rasteiras num pântano. Seus súditos não sabem para onde virar-se em busca de auxilio. E ouvi o senhor dizer que se um estado for bem governado pode-se passar sem vê-lo; se for mal governado, então devemos visitá-lo. Na porta da casa dos médicos há muita gente doente. Experimentarei o que sei nesse sentido e talvez eu possa ser útil e fazer algum bem a esse estado".

- "Ai de mim!" Exclamou Confúcio, "está apenas indo cumprir o destino. Pois Tao não deve intrometer-se. Se o fizer haverá alvos divergentes. De alvos divergentes resulta inquietude; da inquietude vem a preocupação e da preocupação chega-se a um estágio onde se fica além da esperança. Os Sábios antigos primeiro fortaleciam seus próprios caracteres antes de tentar fortalecer o dos outros. Antes de ter firmado bem o seu, que tempo terá você para prestar atenção às façanhas dos homens perversos? Além disso, sabe onde a virtude desaparece com o ar e onde termina a ciência? A virtude desaparece no ar ante o desejo de fama e a ciência termina em competições. Na luta pela fama os homens se esmagam mutuamente, ao passo que sua sabedoria não provoca senão rivalidade. Ambos são instrumentos do mal e não são princípios dignos de bem viver".

- "Além disso, se diante do sólido caráter de alguém e de sua integridade os homens se deixarem influir e diante do menosprezo de alguém pela fama ele chegar ao coração dos homens, esse alguém poderia prosseguir no esforço de pregar a caridade, o dever e as regras de conduta aos homens perversos, mas conseguiria apenas fazer com que esses o detestassem por sua bondade mesmo. Tal pessoa bem merecia ser chamada de mensageira do mal. Um mensageiro do mal será a vítima do mal feito pelos outros. Esse, pobre de você! Será seu fim."

- "Por outro lado, se o príncipe adora o bem e detesta o mal, qual o objetivo que terá você em convidá-lo a mudar de idéias? Antes de abrir a boca, o príncipe mesmo já ter-se-á aproveitado da oportunidade de arrancar-lhe a vitória. Você ficará deslumbrado, sua animação desaparecerá, suas palavras serão gaguejadas, seu rosto denotará confusão e seu coração desfalecerá em seu peito. Será como se você lançasse mão do fogo para dominar o fogo, a água para dominar a água, o que, como se sabe, só pode agravá-los. E se começar por fazer concessões, não haverá fim para elas. Se não prestar atenção a esse conselho justo e falar demais, morrerá às mãos daquele homem violento". "Há muito tempo passado, Chieh assassinou Kuanlung P'ang, e Chou matou o Príncipe Pikan. Suas vítimas eram ambas homens que se tinham aperfeiçoado e que se interessavam pelo bem do povo e por isso ofenderam a seus superiores. Portanto, estes livraram-se daqueles devido à sua bondade. Eis o resultado do amor que tinham à fama. "Há muito tempo, Yao atacou os países de Ts'ung- chin e de Hsüao e Yü atacou o de Yu-hus. As terras foram devastadas, os habitantes chacinados e os governantes mortos. Contudo eles combateram sem cessar e finalmente puseram-se a disputar os objetos. São esses os exemplos de luta pela fama ou por bens materiais. Por acaso não ouviu falar que até os Sábios não podem dominar esse amor pela fama e esse desejo pelos bens materiais (nos governadores)? Você tem probabilidades de ser bem sucedido? Mas, naturalmente tem um plano. Conte-mo".

- "Gravidade de conduta e humildade; persistência e singeleza de propósito - servirão?" indagou Yen Huei.

- "Infelizmente não", volveu Confúcio, "como poderão servir? O príncipe é uma pessoa altiva, cheia de orgulho e é volúvel. Ninguém se opõe a ele e por isso veio a ter verdadeiro prazer em calcar os sentimentos dos demais. E se, como vemos, falhou na prática das virtudes rotineiras você espera que ele, prontamente, se apegará à virtudes mais altas? ele persistirá em sua conduta e embora possa concordar externamente com você, interiormente não se arrependerá. Como, pois, fa-lo-á emendar-se?"

- "Ora, então", (replicou Yen Huei) "eu posso ser internamente reto e externamente condescendente, e substanciarei o que digo fazendo apelo aos exemplos antigos. Aquele que é internamente reto é um servo de Deus. E o que é um servo de Deus sabe que o Filho do Céu e ele mesmo são iguais aos filhos de Deus (21). Deverá tal pessoa perturbar-se se suas palavras são aprovadas ou desaprovadas pelo homem? Tal homem é comumente considerado como uma criança (inocente). Isto é ser servo de Deus. Aquele que é externamente condescendente é um servo de homem. Curva-se, ajoelha-se cruza as mãos - tal é o cerimonial de um ministro. O que todos os homens fazem, não deverei fazer também? O que todos os homens fazem, nenhum deles poderá censurar-me por fazer. Isso é ser um servo do homem. Aquele que frisa suas palavras com apelos à Antigüidade é um servo dos Sábios antigos. Embora eu cite palavras de conselho e o repreenda, são os Sábios da Antigüidade que falam e não eu; assim, não incorrerei na censura por causa de minha retidão. Isso é ser servo dos Sábios antigos. Servirá isso? "Ou então", disse Yen Huei, "não poderei ir mais adiante. Atrevo-me a pedir-lhe um método".

Respondeu Confúcio: "jejue e eu lhe direi o que fazer. Acha que pode ser fácil quando ainda conserva a compreensão limitada? Aquele que trata as coisas com essa leviandade não deve ser aprovado pelos Céus iluminados".

- "Minha família é pobre", respondeu Yen Huei, "e durante muitos meses não provamos nem vinho nem carne. Não é jejum isso?"

- "É um jejum segundo as regras religiosas", retrucou Confúcio, "porém não é o jejum do coração".

- "E posso perguntar-lhe", volveu Yen Huei, "em que consiste o jejum do coração?"

- "Concentre sua vontade. Não ouça com os ouvidos e sim com o cérebro; não com o cérebro e sim com o espírito. Deixe o sentido da audição parar com os ouvidos e deixe o espírito parar com suas imagens. Deixe seu espírito, não obstante, ser como uma carta branca, passivamente correspondente às circunstâncias externas. Numa receptividade completa somente Tao poderá habitar. E essa receptividade é o jejum do coração".

- "Então", observou Yen Huei, "a razão pela qual eu não posso usar esse método é devida à consciência de meu eu. Se puder aplicar esse método será porque a encarnação do próprio eu terá desaparecido. Será isso o que chama de estado de receptividade?".

- "Exatamente," volveu o Mestre. "Deixe-me explicar-lhe. Entre para o serviço desse homem, porém sem idéia de obter fama. Fale quando ele estiver com disposição de ouvir e pare assim que ele não mais quiser ouvi-lo. Faça-o sem qualquer espécie de rótulo ou auto - referências. Conserve-se ligado à Única e deixe as coisas tomarem o curso natural. Assim poderá ter probabilidades de sucesso. É fácil parar de andar: o que embaraça é andar sem tocar o solo. Como um agente do homem é fácil lançar mão de planos artificiais; porém não como um agente de Deus. Você ouviu falar de criaturas de asas, que voam. Nunca ouviu falar de vôos sem asas. Ouviu falar de homens sábios sem esses conhecimentos". "Olhe para esse vazio. Há brilho numa sala vazia. A boa sorte reside no repouso. Se não houver repouso (íntimo) seu espírito estará vagueando por todo lado embora você esteja parado e sentado. Deixe os ouvidos e os olhos comunicarem-se interiormente, mas impeça a entrada a todo o conhecimento que venha do espírito. Então a alma virá para habitar ali, para não falar no homem. É esse o método para a transformação (influente) de toda Criação. Era a chave para a influência de Yü e Shun e o segredo do sucesso de Fu Hsi e Chi Chü. Até que ponto o homem comum seguiria essa mesma regra?"

(Aqui foram omitidos dois trechos. - Editor).

Certo carpinteiro Shih viajava para o Estado de Ch'i. Ao chegar ao Circulo Sombrio, viu uma árvore li sagrada no templo do Deus da terra. Ela era tão grande que sua sombra podia abrigar um rebanho de vários milhares de cabeças. Tinha centenas de palmos de circunferência e subia a oitenta pés antes de abrir os ramos. Uma dúzia de botes poderiam ser cortados de seu tronco. Em multidões as pessoas paravam para olhá-la, mas o carpinteiro nem a notou e prosseguiu em seu caminho sem mesmo lançar um olhar para trás. Entretanto, o aprendiz olhou-a bem e quando alcançou o mestre disse - "Desde que manejo a machadinha em seu serviço nunca vi uma peça de madeira tão esplêndida. Por que razão o senhor, Mestre, nem mesmo se deu ao trabalho de parar para olhá-la?"

- "Esqueça-se dela. Não merece que conversemos a tal respeito", replicou o mestre. "Não serve para nada. Transformada num bote, afundaria; num caixão de defunto apodreceria; em mobília, quebrar-se-ia facilmente; numa porta, racharia; numa coluna seria devorada pelos vermes. Não é madeira de qualidade e não é útil: por isso chegou aos nossos dias presentes. A chegar em casa, o carpinteiro sonhou que o espírito da árvore lhe aparecia e lhe falava do seguinte modo: - "Com que pretendeu comparar-me? Com madeira suave? Olhe para uma cerejeira, uma pereira, uma laranjeira, uma ameixeira e outras árvores frutíferas. Mal seus frutos amadurecem são esbulhadas e tratadas com indignidade. Os grandes galhos são retirados, os pequenos ficam quebrados. Assim, devido ao próprio valor dessas árvores, elas sofrem enquanto vivem. Não podem viver o período de vida que lhes é concedido, mas perecem prematuramente porque destroem-se pela (admiração do) mundo. O mesmo se dá com todas as coisas. Além disso, eu tentei durante longo tempo ser inútil. Muitas vezes estive em risco de ser decepada, porém finalmente alcancei o que desejava e assim tornei-me excessivamente útil a mim mesmo. Tivesse eu prestado para alguma coisa e não teria chegado à altura a que cheguei. Demais tanto você como eu somos coisas criadas. O que adianta criticarmo-nos mutuamente? Um sujeito que não presta para nada em perigo de morte iminente e uma pessoa indicada para falar de uma árvore que não presta para nada?"

Quando o carpinteiro Shih acordou e contou o sonho que tivera, o aprendiz disse: "Se a árvore ansiava por ser inútil como foi que conseguiu tornar-se uma árvore sagrada ?"

- "Psiu!" Volveu o mestre. "Fique calado. Ela simplesmente refugiou-se no templo para fugir ao abuso dos que a não apreciavam. Se não tivesse se tornado sagrada quantos não teriam desejado cortá-la! Além disso, os meios que adota para sua segurança são diferentes dos dos outros e criticá-los pelos padrões ordinários será ficar bem longe do objetivo".

* * *

Tsech'i, de Nan-po, estava viajando pela colina de Shanga quando viu uma enorme árvore que muito o surpreendeu. Mil carros com quatro animais atrelados poderiam abrigar-se sob sua sombra.

- "Que árvore é essa?" Exclamou Tsech'i. "Certamente há de ser de finíssima madeira". Em seguida olhando para cima, viu que seus galhos eram tortos demais para fazer vigas; e olhando para baixo verificou que a madeira era muito cheia de nós, o que a tornava imprestável para fazer ataúde. Provou uma das folhas e pensou que lhe tinham arrancado a pele dos lábios; e o odor era tão forte que bastaria para intoxicar um homem durante três dias seguidos.

- "Ah!" Disse Tsech'i, "essa árvore realmente não serve para nada e foi por isso que chegou até essa idade. Um homem de espírito bem pode seguir seu exemplo de inutilidade".

No Estado de Sung há uma terra pertencente aos Chings, onde medra a catalpa, o cedro e a amoreira. As que têm um palmo ou pouco mais de circunferência são cortadas para gaiolas de macacos. As de dois ou três palmos são cortadas para vigas das belas casas. As de sete ou oito palmos são cortadas para as partes internas dos ataúdes dos ricos. Assim nunca as árvores vivem o tempo que lhes é concedido, pois perecem jovens sob o machado. Tal é a desgraça que cai sobre os que prestam para alguma coisa.

Para os sacrifícios ao Deus Rio nem os touros com testa branca, nem os porcos com focinhos altos, nem os homens que sofrem de hemorróidas podem ser utilizados. Isto é sabido de todos os adivinhos, pois são coisas consideradas como pouco auspiciosas. Os judiciosos, entretanto, considerariam tais crenças como extremamente auspiciosas (para si mesmos).

Houve um corcunda chamado Su. Os queixos batiam-lhe pelo umbigo. Os ombros ficavam mais altos do que a cabeça. Os ossos do pescoço salientavam-se apontando o céu. As vísceras ficavam voltadas para baixo. As nádegas estavam onde deviam estar as costelas. Ganhava a vida como alfaiate ou lavando roupa. Peneirando arroz fazia o suficiente para sustentar uma família de dez pessoas. Quando vieram as ordens para uma conscrição, o corcunda passou pela multidão sem ser notado. E do mesmo modo, na conscrição do governo para trabalhos públicos, sua deformidade salvou-o de ser chamado. Por outro lado, quando o governo distribuiu cereais para os incapazes, o corcunda recebeu tanto como três chung além de dez feixes de lenha para fogo. E se a deformidade física foi suficiente para preservar seu corpo até o fim de seus dias, quanto mais não seria de utilidade a deformidade moral e mental!

* * *

Quando Confúcio estava no Estado Ch'u, o excêntrico Chieh Yu passou diante de sua porta dizendo: "Ó fênix! Ó fênix! Como tua virtude caiu!" Não esperes pelos anos vindouros, não suspires pelo passado. Quando os princípios de direito prevalecerem no mundo, os profetas cumprirão sua missão. Quando os princípios de direito não prevalecerem, eles só cuidarão de preservar-se a si mesmos. Na época atual eles só cuidam de conservar-se fora das prisões. As boas sortes desse mundo são leves como penas, contudo ninguém as estima pelo seu valor real. As infelicidades dessa vida são pesadas como a terra, contudo ninguém sabe como conservar-se fora de seu alcance. Não mais, não mais ostentes tua virtude. Cuidado, cuidado, move-te cautelosamente! Ó espinheiro! Ó espinheiros! não firam meus passos! Escolherei meu caminho, não firam meus pés (22)!''

As árvores da montanha convidam os homens a abaterem-nas; o óleo da lâmpada convida o homem a queimá-lo. A casca da canela pode ser comida, por conseguinte a árvore é cortada. A laca tem utilidade, portanto a árvore é arranhada. Todos os homens sabem qual a utilidade das coisas úteis; porém não sabem a utilidade da inutilidade.



DEFORMIDADES, OU PROVAS DE UM CARÁTER PERFEITO (23)

No ESTADO de Lu vivia um homem chamado Wang T'ai, a quem tinham amputado uma das pernas. Seus discípulos eram numerosos como os de Confúcio.

Ch'ang Chi fez a seguinte pergunta a Confúcio: "Esse Wang T'ai é um mutilado, no entanto tem tantos partidários como o senhor, no Estado de Lu. Não se levanta para pregar nem se senta para discursar, contudo, os que o procuram sem nada saber voltam satisfeitos. Ele será daquelas pessoas que podem ensinar sem palavras e influenciar o espírito das multidões sem empregar meios materiais? Que homem é ele?"

- "Ele é um sábio", replicou Confúcio. "Bem quisera ir procura-lo, porém eu ficaria simplesmente atrás de outros. Mesmo assim irei e fá-lo-ei meu mestre - porque não farão o mesmo que são menos do que eu? E eu farei com que não só o Estado de Lu, como o mundo inteiro, o sigam".

- "O homem é um mutilado", tornou Ch'ang Chi, "e ainda assim o povo o chama "Mestre". Deve ser um homem muito diferente dos homens comuns. assim sendo, como exercita seu espírito?"

- "A vida e a Morte não passam de transformações do grande momento", respondeu Confúcio, "mas não podem afetar-lhe o espírito. O céu e a terra podem entrar em colapso, porém seu modo de pensar perdurará. Sendo sem falhas, na verdade, não partilhará o destino de todas as coisas. Pode controlar a transformação das coisas enquanto conserva intacta a verdadeira fonte".

- "Como assim?" Indagou Ch'ang Chi.

- "Do ponto de vista de diferenciação das coisas", replicou Confúcio, "nós distinguimos entre o fígado e a bílis, entre o Estado de Ch'u e o de Yueh. Do ponto de vista de sua semelhança todas as coisas são uma Única. Aquele que vê as coisas sob essa luz, nem mesmo se perturba pelo que lhe chega através os sentidos da audição e da visão, deixando o espírito vagar na harmonia moral das coisas. Ele vê a unidade nas coisas e não nota a perda dos objetos particulares. E assim a perda de sua perna representa para ele o mesmo que a perda de outro tanto de barro".

- "Mas ele cuida apenas de sua própria cultura," disse Ch'ang Chi. "Utiliza-se de seu saber para aperfeiçoar o espírito e desenvolve em Mentalidade Absoluta. Porém, por que o povo se aglomera ao redor dele?"

- "Um homem", replicou Confúcio, "não procura mirar-se na água corrente e sim na água parada. Pois somente o que em si mesmo é quietude pode instalar quietude nos outros. A graça da terra culminou apenas nos pinheiros e nos cedros; o inverno e o verão são verdes igualmente. A graça de Deus caiu sobre Yao e Shun, e só este chegou à retidão. Felizmente ele era capaz de corrigir-se e assim obteve os meios pelos quais tudo se corrige. Pois a posse da primitividade de alguém (natureza) evidencia-se na verdadeira coragem. Um homem pode, mesmo com um só braço, desafiar um exército inteiro. E se um tal resultado pode ser conseguido por alguém em busca de fama por meio de autocontrole, quanta coragem poderá ser exibida por quem a maneja sobre os céus e terra e dá agasalho a todas as coisas, quem, temporariamente habitando o interior de um corpo com desprezo pelas superficialidades de vista e som, traz seu saber ao ponto de nivelar os conhecimentos e cujo espírito nunca perece! Além disso, ele (Wang T'ai) espera apenas a hora indicada para subir aos Céus. Os homens na verdade reúnem-se ao redor dele de comum acordo. Como poderá ele levar a sério os negócios mundanos?"

***

Shent'u Chia tinha uma perna apenas. Ele estudava sob a direção de Pohun Wujen (Imbecil Como Ninguém) juntamente com Tsech'an (24) do Estado de Cheng. Esse último disse-lhe - "Quando eu me despedir primeiro, você ficará. Quando você se despedir primeiro, eu ficarei".

No dia seguinte, quando estavam novamente sentados juntos na sala de aula, Tsech'an disse:

- "Quando eu me despedir primeiro, você ficará. Ou se você sair primeiro, ficarei eu. Estou para sair. Vai ficar ou não? Reparo que você não demonstra respeito por uma personagem superior. Quem sabe se você não se julga um meu igual?"

- "Na casa do Mestre," replicou Shent'u Chia, "já há uma personalidade superior (o Mestre). Talvez você pense que é essa personagem superior e por conseguinte deve ter precedência sobre os demais. Ora, ouvi dizer que se um espelho é perfeitamente límpido, a poeira não o empanará, e se o empanar será porque ele não se mostra mais límpido. Aquele que se associa durante muito tempo aos sábios ficará sem falha. Ora, você tem estado pesquisando as grandes coisas aos pés de nosso Mestre, e ainda assim pode pronunciar palavras como as que proferiu. Não acha que está cometendo um erro?"

- "Embora você já seja assim aleijado", volveu Tsech'an, "ainda procura competir em virtude com Yao. Olhando para você, direi que tem bastante o que fazer se refletir nos seus passados erros!"

- "Os que ocultam seus pecados", disse Shent'u Chia, para não perder as pernas, são muito numerosos. Os que se esquecem de ocultar seu mau comportamento e por isso perdem as pernas (por meio de castigo) são poucos. Porém, apenas os homens virtuosos podem reconhecer o inevitável e continuar inalteráveis. Quem passeia diante dos olhos do touro quando Hou Yi (famoso arqueiro) estiver mirando para atirar, será atingido. Os que não forem feridos salvar-se-ão por pura sorte. Existem muitas pessoas com pernas perfeitas que se riem de mim por não tê-las. Isso costumava encolerizar-me. Todavia, desde que vim estudar sob direção de nosso Mestre, deixei de aborrecer-me por isso. Talvez nosso Mestre tenha conseguido lavar-me (purificando) com sua bondade. De qualquer modo, tenho estado com ele dezenove anos sem pensar em minha deformidade. Agora você e eu estamos vagueando pelo reino espiritual e você está me julgando no reino físico (25). Não estará cometendo um erro?"

Diante dessa resposta Tsech'an começou a inquietar-se e sua fisionomia transformou-se pedindo, finalmente, a Shent'u Chia para não mais falar no caso.

***

Havia um homem no Estado de Lu que tinha sido mutilado; chamava-se Shushan Sem - Dedos - dos - Pés. Andando sobre os calcanhares, foi procurar Confúcio, mas Confúcio lhe disse - "Você foi descuidado e por isso carrega consigo esse infortúnio. O que adianta vir ver-me agora? - "Foi porque fui inexperiente e descuidado com meu corpo que feri meus pés," retrucou Sem- Dedos- dos- Pés, "Agora vim com algo mais precioso do que os pés e é isso o que procuro preservar. Não há homem nenhum, mas o Céu o abriga; e não há homem nenhum, porém a Terra o sustenta. Pensei que o senhor, Mestre, seria como o Céu e a Terra. Nunca pensei ouvir essas palavras de sua parte".

- "Perdoe minha estupidez", disse Confúcio. "Por que não entra? Discutirei com você o que sei." Sem- Dedos- dos- Pés saiu.

Assim que Sem - Dedos - dos - Pés se afastou, Confúcio disse a seus discípulos - "Aproveitem a lição. Sem - Dedos tem uma só perna, contudo procura aprender a fim de expiar seus erros anteriores. Quanto mais não devem fazer os que não têm erros para expiar?"

Sem - Dedos saiu para ver Lao Tan (Laotse) e disse - "Confúcio é ou não é homem Perfeito? Por que razão se mostra tão ansioso para aprender com o senhor? Ele está procurando obter reputação por meio de seu saber oculto e estranho, o que é considerado pelo Homem Perfeito como simples grilhões".

- "Por que não o fez considerar a vida e a morte, e a possibilidade e impossibilidade como alternações de um único e mesmo princípio", respondeu Lao Tan, "livrando-o assim dos grilhões?"

- "É Deus quem assim o castigou", retrucou Sem - Dedos - dos - Pés. "Como poderá livrar-se?".

***

O Duque Ai do Estado de Lu disse a Confúcio - "No Estado de Wei há um homem feio chamado Ait'ai (Feio) T'o. Os homens que convivem com ele não podem esquecê-lo. As mulheres que o vêem dizem aos pais - "Preferiria ser a concubina desse homem a ser a esposa de um outro". São muitas as mulheres que assim pensam. Ele nunca tenta dirigir os outros, mas apenas os segue. Não tem a seu dispor nenhum poder de governante pelo qual possa proteger as vidas dos homens. Tampouco tem fortuna amontoada com a qual lhes satisfaça os apetites e é, além disso, terrivelmente feio. Segue mas não dirige o seu nome não é conhecido além do próprio Estado. Todavia os homens e as mulheres procuram igualmente sua companhia. Assim deve haver nele algo diferente dos demais. Fui procurá-lo e verifiquei que é, na verdade, amedrontadoramente feio. Entretanto ainda não tínhamos estado muitos meses em contato quando comecei a ver que havia algo nesse homem. Antes de um ano comecei a confiar nele. Como meu estado necessitasse de um Primeiro Ministro ofereci-lhe o cargo. Olhou-me de mau humor antes de responder e pareceu-me que preferia declinar a oferta. Talvez não me julgasse bom demais para ele! De qualquer modo dei-lhe o cargo; porém dentro de muito pouco tempo ele me deixou e foi-se. Afligi-me como se tivesse perdido um amigo, como se não houvesse mais ninguém com quem eu pudesse viver alegremente em meu reino. Que espécie de homem é ele?

- "Quando estive em certa missão no Estado de Ch'u", retrucou Confúcio, "vi uma porção de porquinhos que sugavam as tetas da porca morta. Depois de algum tempo olharam-na e em seguida todos abandonaram o corpo e fugiram. Pois sua mãe não mais os olhava e tampouco parecia mais ser de sua espécie. O que eles amavam era sua mãe! E não o corpo que a continha e sim o que fazia ser o corpo o que ele era. Quando um homem é morto numa batalha, seu caixão não é coberto pelo dossel reto. Um homem cuja perna foi decepada não dará valor a um presente de sapatos. Em todos esses casos, o propósito original dessas coisas desapareceu. As concubinas do Filho do Céu não cortam as unhas nem furam as orelhas. As (servas) que se casam têm que viver fora (do palácio) e não podem ser novamente empregadas. Tal é a importância ligada à conservação de todo o corpo. Como não será mais valioso aquele que preserva sua virtude intacta?".

- "Ora, o Feio T'o nada disse e recebeu confiança. Nada fez e foi procurado e até lhe ofereceram o governo de um país com o único receio de que ele pudesse não aceitar. Na verdade, ele deve ser aquele cujos talentos são perfeitos e cuja virtude não tem exterioridades!".

-"O que pretende dizer afirmando que seus talentos eram perfeitos?" indagou o duque.

- "A Vida e a Morte," respondeu Confúcio "a posse e a perda, o sucesso e a bancarrota, a pobreza e a riqueza, a virtude e o vício, a boa e a má reputação, a fome e a sede, o calor e o frio - são transformações no curso natural dos acontecimentos. Dia e noite sucedem-se um ao outro, e nenhum homem pode dizer de onde brotam. Por conseguinte não se deve permitir que perturbem a harmonia natural, nem que entrem nos domínios da alma. Deve-se viver assim, a fim de ficar em harmonia constante com o mundo, sem perda de felicidade e, dia e noite, partilhando a paz de primavera com as coisas criadas. Desse modo continuamente se cria as estações no próprio peito. De uma tal pessoa pode dizer-se que tem talentos perfeitos.

- "E o que é a virtude sem exterioridade?".

- "Quando parada", disse Confúcio, "a água fica em perfeito estado de repouso. Que ela seja seu modelo. Permanece calma interiormente e não se agita exteriormente. É do cultivo de uma tal harmonia que resulta a virtude. E se a virtude não apresentar exterioridades, o homem não será capaz de conservar-se distante dela".

Dias depois, o Duque Ai contou o seguinte a Mintse dizendo - "Quando tomei as rédeas do governo pela primeira vez, pensei que guiando o povo e tomando cuidado de sua vida cumpriria todo meu dever de governante. Porém agora, depois de ter ouvido as palavras de um homem perfeito, receio que não tenha conseguido meu objetivo e que não fiz senão dissipar loucamente a energia de meu corpo e trazer a ruína para meu país. Confúcio e eu não somos príncipe e ministro e sim amigos espirituais".

Corcunda- Lábios- Deformados falou com o Duque Ling de Wei e o duque agradou-se dele. Quanto aos homens sem defeitos físicos, ele achava que tinham os pescoços finos demais. Papo- Grande - Como - Jarro falou com o Duque Huan de Ch'i e o duque agradou-se dele. Quanto aos homens sem deformidades, ele achava que tinham os pescoços magros demais.

Assim acontece quando a virtude existe: a forma exterior é esquecida. Contudo a humanidade não se esquece do que deve ser esquecido, esquecendo-se de que não deve ser esquecido. Isso é, na verdade, esquecimento! E assim o Sábio deixa seu espírito em liberdade enquanto o conhecimento é considerado como exótica manifestação; os ajustes são feitos para cimentar as relações de amizades, os bens apenas para os tráficos sociais, e as artes mecânicas apenas para servir o comércio. Porque o Sábio não inventa e portanto não emprega o que sabe; ele não se separa do mundo e portanto não necessita de cimentar as relações; não sofre perdas e portanto não tem necessidade de adquirir; nada vende e por conseguinte não se utiliza do comércio. Essas quatro qualificações foram-lhe doadas por Deus, isto é, ele é alimentado por Deus. E aquele que é assim alimentado por Deus pouca necessidade tem de ser alimentado pelo homem. Tem a forma humana sem as paixões humanas. Devido ao fato de ter a forma humana associa-se aos homens. Devido ao fato de não ter paixões humanas, as questões de direito e errado não o tocam. Na verdade é infinitesimal o que pertence ao ser humano; infinitamente grande é o que é completado por Deus".

Hueitse disse a Chuangtse - "Os homens primitivamente não tinham paixões?"

- "Certamente", retrucou Chuangtse.

- "Mas se um homem não tem paixões," argumentou Hueitse, "o que é que o faz ser um homem?"

- "Tao," volveu Chuangtse, "lhe dá suas expressões e Deus a forma. Como não ser um homem?"

- "Se então ele é um homem," tornou Hueitse, "como pode não ter paixões?

- "O direito e o errado (aprovação e desaprovação)" respondeu Chuangtse, "são ao que me refiro ao dizer paixões. Por um homem sem paixões eu me refiro ao que não permite que preferências e repulsas disturbem sua harmonia interna, porém antes sujeita-se à natureza e não tenta melhorar (as coisas materiais) da vida".

- "Mas como um homem vive sua vida material", indagou Hueitse, "se ele não procura melhorar (as coisas materiais) de seu viver?"

- "Tao lhe dá expressão," observou Chuangtse, "Deus lhe dá sua forma. Ele não permitiria que preferências e repulsas lhe perturbassem sua economia interna. Porém, agora você está empregando a inteligência nas exterioridades e esgotando o seu espírito vital. Recoste-se a uma árvore e cante; ou sente-se perto de uma mesa e durma! Deus lhe deu uma visão bem proporcionada, contudo seu único pensamento é o difícil e o branco (26).



O GRANDE SUPREMO

AQUELE QUE sabe o que é de Deus e o que sabe o que é do Homem alcançou verdadeiramente o cimo (da sabedoria) aquele que sabe o que é de Deus, molda sua vida segundo Deus. Aquele que sabe o que é do Homem, pode ainda usar sua ciência para desenvolver o conhecimento do desconhecido, vivendo até o fim de seus dias e não perecendo jovem. Eis a perfeição do saber.

Nisso, entretanto, há uma falha. O saber correto depende dos objetos, mas os objetos da ciência são relativos e incertos (mutáveis). Como se pode saber que o natural não é realmente do homem e o que é do homem não é realmente natural? Nós devemos, além disso, ter os homens verdadeiros antes de termos a ciência verdadeira.

Mas o que é o homem verdadeiro? O verdadeiro homem de antigamente não se aproveitava do fraco, não atingia seus fins pela força bruta, e não reunia ao redor de si os conselheiros. Assim, falhando, não tinha motivo para arrependimentos; sendo bem sucedido, nenhuma causa para satisfação própria. E podia subir a alturas sem tremer, entrar na água sem molhar-se e passar pelo fogo sem queimar-se. Eis a espécie de conhecimento que chega às profundezas de Tao. Os verdadeiros homens de antigamente dormiam sem sonhos e acordavam sem preocupações. Comiam indiferentes ao paladar e aspiravam fundamente o ar. Porque os verdadeiros homens aspiram o ar até os calcanhares; os vulgares até, apenas, a garganta. Da boca dos perversos as palavras são expelidas como vômitos. Quando as afeições do homem são profundas, seus dons divinos são superficiais.

Os verdadeiros homens antigos não sabiam o que era amar a vida ou temer a morte. Não se alegravam pelos nascimentos nem se esforçavam para evitar a dissolução vinham sem preocupações e partiam sem preocupações. Era tudo. Não se esqueciam de onde tinham surgido, mas não procuravam indagar quando voltariam para lá. Alegremente aceitavam a vida esperando pacientes pela redenção (o fim). Eis o que se chama não desencaminhar o coração de Tao, e não suprir o natural por meios humanos. A um homem desses chamar-se-ia com razão um homem verdadeiro.

Homens assim são de espírito livre e calmos no agir e têm testas altas. Algumas vezes são desconsolados como o outono, e outras animados como a primavera; suas alegrias e tristezas estão em razão direta com as quatro estações, em harmonia com toda a criação e ninguém pode conhecer-lhes o limite. E assim é que quando o Sábio assalaria a guerra, ele pode destruir um reino e sem perder contudo a afeição do povo; espalha bênçãos sobre todas as coisas, porém isso não é devido a seu (consciente) amor dos semelhantes. Portanto aquele que sente prazer em compreender o mundo material não é um Sábio. O que tem afeições pessoais não é humano. O que calcula o tempo de suas ações não é inteligente. O que desconhece a diferença entre o beneficio e o mal não é um homem superior. O que anda atrás da fama sob risco de perder o próprio eu não é um erudito. O que perde a vida e não é sincero para si mesmo, nunca pode ser mestre dos homens. Assim Hu Puhsieh, Wu Kuang, Po Yi, Shu Ch'i, Chi Tse, Hsu Yu, Chi T'o e Shent'u Ti foram os servos dos governantes e cumpriram o mandato de outros e não o seu próprio (27).

Os verdadeiros homens de antigamente pareciam ser de estatura gigantesca e, contudo, não podiam ser abatidos. Portavam-se como se em si próprios faltasse alguma coisa, mas sem olhar para os outros. Naturalmente independentes de espírito, não eram severos. Vivendo em liberdade sem peias todavia não tentavam exibi-la. Pareciam sorrir quando quisessem e mover-se apenas segundo necessidade. Sua serenidade fluía da bondade interior. Nas relações sociais conservavam o caráter íntimo. De espírito tolerante, pareciam grandiosos; gigantescos pareciam acima de controle. Constantemente dentro de suas casas, pareciam portas fechadas; de espírito abstrato, pareciam ter esquecido o dom da palavra. Viam nas leis penais uma forma externa; nas cerimônias sociais, certos meios; na ciência, instrumentos de utilidade; em moralidade, uma guia. Eis a razão pela qual, para eles, as leis penais significavam uma administração misericordiosa; as cerimônias sociais, um meio de caminhar com o mundo; a ciência, uma ajuda para fazer o que não podiam evitar; e a moralidade, um guia que os podia fazer andar ao lado de outros para chegar a uma colina (28). E todos os homens pensavam realmente que eles sofriam para viverem corretamente.

Pois o que lhes prendia a atenção era o Único e o que não os preocupava era o Único também. O que consideravam como Único era Único e o que não consideravam como Único era Único outrossim. No que era Único, eles eram de Deus; no que não era Único, eram do homem. E assim, entre o humano e o divino não se produzia nenhum conflito. Eis o que era ser um homem verdadeiro.

A vida e a Morte fazem parte do Destino. Sua seqüência, como o dia e a noite, é de Deus, acima da interferência do homem. Tudo isso existe na natureza inevitável das coisas. Ele olha simplesmente para Deus como seu pai; se ele o ama com seu corpo, por que não amá-lo também com o que é maior do que o corpo? Um homem olha para o dirigente das massas como para alguém que lhe é superior; se ele quer sacrificar seu corpo (por seu dirigente) não oferecerá também o que tem de puro (espírito)?

Quando a lagoa seca e os peixes ficam sobre o solo seco, de preferência a deixá-los procurarem umidade com suas secreções e saliva seria bem melhor deixá-los esquecidos em seus rios e lagos nativos. E seria melhor do que rezar a Yao e censurar Chieh por ter esquecido ambos (o bom e o mau) e perder-se em Tao.

O Grande (universo) deu-me essa forma, essa lida na virilidade, esse repouso na velhice e o descanso na morte. E certamente quem é um tal árbitro de minha vida é o melhor árbitro de minha morte.

Um bote pode ser escondido numa enseada, ou oculto num pântano, geralmente considerando-se que fica em lugar escuro. Mas à meia noite um homem forte pode vir e carregá-lo nas costas. Os de compreensão difícil não percebem que, embora se possa esconder as coisas pequenas nas maiores, sempre haverá uma probabilidade de perdê-las. Porém se você confiar o que pertence ao universo inteiro, dali não haverá fuga possível. Pois é essa a grande lei das coisas.

Termos sido lançados nessa forma humana é para nós fonte de alegria. Que alegria maior, além de nossa concepção, saber que o que está agora sob forma humana pode sofrer transições sem fim tendo apenas o infinito por limite? Eis porque o Sábio se regozija com aquilo que não pode perder-se e sim que dura sempre. Pois se imitamos os que aceitam graciosamente unia vida longa ou uma vida curta e as vicissitudes dos acontecimentos, quanto mais não imitaríamos o que anima toda criação da qual dependem todos os fenômenos de transformação?

Pois Tao tem sua realidade interior e suas evidências. É desprovido de ação e de forma. Pode ser transmitido mas não recebido. Pode ser obtido, mas não visto. Baseia-se em si mesmo, tem raízes em si próprio. Antes da existência do céu e da terra, Tao existia por si desde muito. Dá o espírito e rege seus poderes espirituais, e deu ao Céu e à Terra seu nascimento. Para Tao o zênite não é alto, nem o nadir, baixo; nenhum ponto no tempo passou-se há muito, nem pelo lapso das eras ficou velho.

Hsi Wei obteve Tao e assim pôs o mundo em ordem. Fu Hsi (29) o obteve e pôde roubar os segredos dos princípios eternos. A Grande Ursa o obteve e jamais se desviou de seu curso. O sol e a lua, o obtiveram e nunca mais deixaram de girar. Ka'n P'i (30) o obteve e foi morar nas montanhas K'unlun. Ping I (31) o obteve e rege as correntes. Chien Wu (32) o obteve e mora no Monte T'ai. O Imperador Amarelo (33) o obteve e vagueia acima das nuvens, do céu. Chuan Hsü (34) o obteve e vive no Palácio Negro. Yu Ch'ang (35) o obteve e estabeleceu-se no Pólo Norte. A Rainha Mãe Ocidental (Fada) o obteve e fixou-se em Shao Kuang, desde quando e até quando, ninguém sabe. P'eng Tsu o obteve e viveu desde o tempo de Shun até o tempo dos Cinco Príncipes. Fu Yueh o obteve e como Ministro de Wu Ting (36) viu suas leis obedecidas por todo império. E agora, de carro sobre Tungwei (uma constelação) e puxado por Chíwei (outra constelação), passa tempos entre as estrelas do céu.

***

Nanpo Tsek'uei disse a Nü Yu (ou Mulher Yü) - "Você já está em idade avançada e, no entanto, tem a pele de uma criança. Como pode ser isso?"

Nü Yü respondeu - "Aprendi a compreender Tao".

- "Poderei alcançar Tao estudando-o?" Indagou o outro. "Não! Como poderá compreendê-lo? Observou Mi Yü: "Não é do tipo indicado. Veja Puliang I. Ele tinha todos os talentos mentais de um sábio, mas não o Tao do sábio. Ora, eu tinha Tao, embora me faltassem os talentos, Mas você pensa que eu era capaz de ensiná-lo a tornar-se um sábio? Se assim fosse, então, ensinar Tao a alguém que tivesse os talentos de um sábio seria uma coisa fácil. Não é assim, porque eu precisei esperar pacientemente para revelá-lo a ele. Em três dias ele pôde transcender esse mundo dos homens. Novamente esperei sete dias mais, então ele pôde transcender toda existência material. Depois que pôde transcender toda existência material, esperei mais nove dias, depois dos quais ele pôde transcender toda vida. Depois que ele pôde transcender toda vida, ele possuía a clara visão da manhã e depois disso era capaz de ver o Solitário (Único). Depois de ver o Solitário pôde abolir a distinção entre o passado e o presente. Depois de abolir a distinção entre o passado e o presente sentiu-se capaz de entrar onde a vida e a morte não mais existem, onde matar não rouba a vida nem tampouco o nascimento acrescenta alguma coisa. Estava sempre de acordo com as exigências do que o cercava, recebendo tudo e satisfeito com tudo, considerando tudo como coisas destruídas e tudo como se precisasse completar. Eis o que é ser "Seguro no meio da confusão" alcançando a segurança através o caos".

- "Donde aprendeu isso?" Perguntou Nanpo Tsek'uei.

- "Aprendi-o com o Filho da Tinta", replicou Nü Yü, e o Filho da Tinta o aprendeu com o Neto da Erudição, o Neto da Erudição com a Compreensão, a Compreensão com o Conhecimento Profundo, o Conhecimento Profundo com a Prática, a Prática com a Canção do Povo, a Canção do Povo com o Silêncio, o Silêncio com o Vácuo e o Vácuo com o Que - Parece - O - Começo".

***

Quatro homens: Tsesze, Tseyu, Tseli e Tselar conversavam dizendo - "Quem quer que seja pode considerar - Não- Ser a cabeça, a Vida - a espinha dorsal, a Morte - a cauda, e quem quer que seja que compreenda que a morte e a vida, o ser e o não-ser de um único corpo, esse homem será admitido em nossa amizade. Os quatro olharam-se e sorriram e, tendo-se compreendido mutuamente, tornaram-se inevitavelmente amigos.

Algum tempo depois, Tseyu caiu doente e Tsesze foi vê-lo.

- "O Criador é grande, na verdade!" Disse o doente". Veja como ele me dobrou". Suas costas tinham-se dobrado de tal modo que as vísceras ficavam no alto do corpo. As bochechas estavam na altura do umbigo e os ombros estavam mais altos do que o pescoço. Os ossos do pescoço alteavam-se apontando para o céu. Toda a economia de seu organismo estava transtornada, porém ele se conservava calmo como sempre. Arrastou-se para um poço e disse - "Ai de mim, por Deus ter me dobrado desse modo!"

- "Não gosta?" Perguntou Tsesze.

- "Não. Como poderia gostar?" Volveu Tseyu. "Se meu braço esquerdo se transformasse num galo, eu seria capaz de saudar a aurora com ele. Se meu braço direito se transformasse numa funda, eu poderia atirar uma ave e assá-la. Se minhas nádegas se virassem em rodas e meu espírito virasse um cavalo eu poderia montar nele - que necessidade teria de um carro? Obtive a vida porque era chegado o meu tempo e agora dela me separo de acordo com Tao. Satisfeito com a vinda das coisas no tempo devido e vivendo segundo Tao, a alegria e tristeza não me tocam. Isso se chama, segundo os antigos, estar livre da escravatura. Os que não podem livrar-se da escravatura assim ficam porque vivem ligados à rede da existência material. Mas o homem sempre tem cedido diante de Deus; por que então não gostar disso?"

Mais algum tempo e Tselai caiu doente e ficou deitado sem ar enquanto a família o rodeava chorando. Tseli foi vê-lo e bradou para a esposa e para os filhos - "Saiam! Estão impedindo sua desintegração". Depois, recostando-se contra a porta disse - "Deus é muito grande! Fico pensando o que fará de você agora e para onde vai mandá-lo. Acha que Ele o transformará no fígado de um rato ou na perna de um inseto?"

- "Um filho", retrucou Tselai, "deve ir para onde quer que seus pais o mandem, Leste, Oeste, Norte ou Sul, Yin e Yang não são outros senão os pais dos homens. Se Yin e Yang me mandarem morrer depressa. e eu vacilar, então a culpa será minha e não deles.

O Grande (universo) me deu esta forma, essa lida na vida, esse repouso na velhice, esse descanso na morte. Certamente aquele que é um tão doce árbitro de minha vida é o melhor árbitro de minha morte".

- "Suponha que o metal em ebulição num cadinho esteja borbulhando e diga - "Faça de mim um Moyeh (37)". Acho que o mestre fundidor rejeitaria esse metal como impróprio. E se simplesmente porque fui moldado em forma humana eu dissesse - "Apenas um homem! apenas um homem!" eu acho que o Criador também me rejeitaria como imprestável. Se eu considerasse o universo como um cadinho e o Criador como o Mestre Fundidor, como poderia preocupar-me para onde iria mandar-me?" Em seguida caiu em sono calmo e acordou bem vivo.

***

Tsesang Hu, Mengtse Fan e Tsech'in Chang conversavam juntos dizendo - "Quem pode viver junto como se não vivesse junto? Quem seria capaz de ajudar uns aos outros como se não se ajudassem inutilmente? Quem poderá subir aos céus e vaguear pelas nuvens, percorrer o Infinito Derradeiro, esquecido da existência, para sempre e sempre sem fim? Os três olharam-se e sorriram com compreensão perfeita e tornaram-se amigos, portanto."

Pouco tempo depois, Tsesang Hu morreu, e nesse tempo Confúcio mandou Tsekung para assistir o funeral. Mas Tseyung verificou que um de seus amigos estava cuidando dos casulos do bicho da seda, e o outro estava tocando um instrumento de corda, e (ambos) cantavam juntos o seguinte:

"Oh. Volte para nós, Sang Hu,

Oh! Volte para nós, Sang Hu,

Já voltaste para teu verdadeiro estado

Enquanto nós ainda permanecemos aqui como homens! Oh!"

Tsekung correu para eles e disse - "Como podem cantar na presença do corpo? Acham esses modos bonitos?".

Os dois homens se entreolharam e rindo disseram - "O que esse homem saberá acerca do significado das boas maneiras? Tsekung voltou e contou tudo a Confúcio perguntando-lhe - "Que espécie de homens são eles? Pensam só em render culto a ninharias e ao que fica além de seus envoltórios corporais. Sentam-se perto de um defunto e cantam sem se comoverem. Não existe um nome para tais pessoas. Que espécie de homens são eles?"

- "Esses homens", volveu Confúcio, "gracejam das coisas materiais; eu me divirto com eles. Por conseqüência, nossos caminhos não se cruzam e fui tolo ao mandá-lo aos funerais. Eles se consideram como companheiros do Criador e gracejam dentro do único Espírito do universo. Olham para a vida como se ela fosse enorme papeira ou excrescência e para a morte como se fosse a abertura de um tumor. Como um povo desse pode preocupar-se com a aproximação da vida e da morte e suas conseqüências? Pedem sua forma emprestada aos diferentes elementos e temporariamente habitam formas comuns, inconscientes de seus órgãos internos e esquecidos de que têm os sentidos da audição e da visão. Andam pela vida para diante e para trás como num círculo sem princípio nem fim, errando, esquecidamente para além da poeira e do sujo da mortalidade, e brincando acerca dos negócios da inação. Como poderiam esses homens preocupar-se com os convencionalismos deste mundo só para o povo ver?"

- "Mas se é esse o caso", disse Tsekung, "qual o mundo (corporal ou espiritual) que o senhor seguiria?"

- "Sou um dos que Deus condenou", tornou Confúcio. "Não obstante, partilharei com você (o que sei)".

- "Posso perguntar-lhe qual o seu método?" Indagou Tsekung.

- "Os peixes vivem a vida inteira na água. Os homens vivem a vida inteira em Tao", replicou Confúcio. "Os que vivem na água medram nas lagoas. Os que vivem em Tao alcançam a realização de sua natureza na inação. Donde o ditado: "Os peixes se perdem (são felizes) na água; o homem se perde (é infeliz) em Tao".

- "Posso perguntar", falou Tsekung, "a respeito (aqueles homens) desse povo estranho?"

- "(Esses) povo estranho", retrucou Confúcio, "é estranho aos olhos dos homens, porém normal aos olhos de Deus. Donde o ditado: o que é medíocre no céu seria o melhor no mundo, e o melhor no mundo, o medíocre no céu".

***

Yen Huei disse a Chungni (38) (Confúcio) - "Quando a mãe de Mengsun Ts'ai morreu, ele chorou, porém sem deitar muco nasal; seu coração não se sentia pesaroso; usou luto sem tristeza. Contudo, embora lhe faltassem esses três pontos, ele era considerado o melhor pranteador do Estado de Lu: Pode haver, realmente, pessoas com reputação tão oca? Estou admirado".

- "O senhor Mengsun", disse Chungni, "assenhoreou-se realmente (de Tao). Ultrapassou os sábios. Ainda existem coisas que ele não pode abandonar, porém, já abandonou outras, O senhor Mengsun não sabe como viemos para a vida, nem para onde vamos depois da morte. Não sabe qual deve vir em primeiro lugar e qual em último. Está pronto a ser transformado em outras coisas sem preocupar-se com o que pode ser mudado - eis tudo. Como poderia aquilo que está se modificando dizer que não se modificará e como poderia aquilo que se considera permanente compreender que já se transformando? Mesmo você e eu somos talvez sonhadores que ainda não acordamos. Além disso, ele sabe que sua forma está sujeita a transformação, mas que seu espírito continua o mesmo. Não crê na morte real, mas considera-a como se se movesse numa nova casa. Chora apenas quando vê os outros chorarem e isso lhe vem naturalmente".

- "Além disso, nós todos falamos de "eu". Como sabem o que é esse "eu" de que falamos? Se você sonhar que é uma ave, vagueará pelos céus, ou se sonhar que é um peixe mergulhará nas profundezas do oceano. E não pode dizer se o homem que está falando no momento está acordado ou sonhando.

- "Um homem sente uma sensação agradável antes de sorrir e sorri antes de pensar que deve sorrir. Renuncie à seqüência das coisas, esquecendo as transformações da vida e entrará no puro, no divino, no Único".

Yi- erh- tse foi ver Hsü Yu. O ultimo perguntou-lhe - "O que aprendeu com Yao?"

"Ele me exortou", respondeu o primeiro, "a praticar a caridade e cumprir meu dever e distinguir claramente entre o direito e o errado". "O que deseja aqui, então? Perguntou Hsü Yu. "Se Yao já o marcou com a caridade do coração e do dever e lhe ensinou o que era direito e errado, o que está fazendo aqui nesse à vontade, sem grilhões, aceitando toda e qualquer vizinhança?"

- "Não obstante", replicou Yi- erh- tse, "gostaria de passear até seus confins".

- "Se um homem perdeu os olhos", volveu Hsü Yu, "é impossível para ele juntar-se à apreciação da beleza do rosto e da pele ou diferençar um vestido azul de sacrifício de um amarelo".

- "Wu Chuang (Sem - Decoro) menospreza sua beleza", respondeu Yi- erh- tse, "Chu Liang a sua força, o Imperador Amarelo abandona sua sabedoria - tudo isso vem de um processo de limpeza e purificação. E como sabe que o Criador me livrará de minhas máculas e me dará um novo nariz, e me tornará digno de ser um discípulo de você mesmo?".

- "Ah!" Volveu Hsu, "isso não se pode saber. Mas vou fazer-lhe uma descrição rápida. Ah! meu Mestre, meu Mestre! Ele compõe todas as coisas criadas e não leva em conta a justiça. Faz com que todas as coisas criadas brotem e não leva em conta sua bondade. Datando de antes da mais remota Antigüidade. Ele não leva em conta sua velhice. Cobrindo o céu, suportando a terra e dando forma às várias coisas, Ele não leva em conta sua perícia. É Ele quem você deve procurar".

Yeh Huei falou a Chungni (Confúcio) - "Estou progredindo".

- "Como assim?" perguntou o último.

- "Livrei-me da caridade e do dever", retrucou o primeiro.

- "Muito bem", replicou Chungni, "porém não é absolutamente perfeito".

Num outro dia, Yen Huei encontrou-se com Chungni e disse -"Estou progredindo".

- "Como assim?"

- "Posso esquecer-me de mim mesmo enquanto sentado", respondeu Yen Huei.

- "O que quer dizer com isso?" Indagou Chungni mudando de expressão fisionômica.

- "Iivrei-me de meu corpo", respondeu Yen Huei. "Descartei-me de meus poderes de raciocínio. E por esse meio livrei-me de meu corpo e de meu espírito tornando-me Único como o Infinito. É isto o que quero dizer ao falar que me esqueço de mim mesmo enquanto estou sentado".

- "Se você se tornou Único", disse Chungni, "não pode haver objetivo. Se você perdeu-se não pode mais haver obstáculo. Talvez você seja realmente um homem prudente. Espero obter permissão para seguir seus passos".

***

Tseyü e Tsesang eram amigos. Uma vez quando tinha chovido durante dez dias, Tseyü disse:

- "Tsesang está doente, com certeza". Assim empacotou alguns alimentos e foi vê-lo. Chegando à porta ouviu algo que lembrava o choro e o canto acompanhado pelo som de um instrumento de corda, com as seguintes palavras: - "Ó Pai! Ó Mãe! Foi devido a Deus? Foi devido ao homem?" Era como se sua voz estivesse partida e as palavras truncadas.

Desse modo Tseyü entrou e perguntou - "Por que cantam desse modo?" - "Eu procurava pensar quem poderia ter-me trazido a esse extremo", replicou Tsesang, "mas nada posso supor. Meu pai e minha mãe dificilmente desejariam que eu fosse pobre. O Céu cobre tudo igualmente. A Terra tudo suporta igualmente. Como puderam fazer-me, particularmente, pobre? Eu estava procurando descobrir quem era o responsável por isso mas sem sucesso. Certamente então fui trazido a essa situação extrema pelo Destino.



DEDOS DOS PÉS UNIDOS

Dedos dos pés unidos e dedos na mão, a mais, parecem proceder da natureza embora, funcionalmente falando, sejam supérfluos. Papeiras e tumores parecem vir do corpo, contudo, em sua natureza, não têm utilidade. E (similarmente) abraçar muitas doutrinas heterogêneas de caridade e dever e considerá-las na prática como partes dos sentimentos naturais do homem não é o verdadeiro caminho de Tao. Pois, assim como artelhos unidos não passam de pedaços de carne inúteis e os dedos a mais não são senão excrescências sem utilidade, o mesmo acontece com os vários desenvolvimentos artificiais dos sentimentos naturais dos homens e as extravagâncias de conduta caridosa e obediente que não passam de vários usos supérfluos da inteligência.

As pessoas com agudeza superfina de visão põem em confusão as cinco cores, perdem-se nas formas e nos desenhos e nas distinções entre as roupas verdes e amarelas de sacrifício. Não é assim? Dessas era Li Chu (o perspicaz). As pessoas com agudeza superfina de audição confundem as cinco notas, exageram as diferenças tônicas dos seis diapasões e os vários timbres de metal, pedra, seda e bambu, no Huangchung e do Talü (39). Não é assim? Dessas era Shih K'uang (mestre de música). As pessoas que anormalmente desenvolvem a caridade, exaltam a virtude e suprimem a natureza a fim de ganhar reputação, perturbam o mundo com o barulho de suas discussões e fazem com que ele siga doutrinas impraticáveis. Não é assim? Dessas eram Tseng e Shih (40). Pessoas que se excedem em argumentos, como se estivessem empilhando tijolos e dando nós, analisando e indagando as diferenças entre o difícil e o branco, identidades e dessemelhanças, esgotam-se, simplesmente em vão, por meio de termos inúteis. Não é assim? Dessas eram Yang e Mo (41). Todas essas não passavam de excrescências, supérfluas e perdidas, de ciência e não foram guias perfeitos para o mundo.

Aquele que deve ser o derradeiro guia jamais perde a visão da natureza íntima da vida. Portanto, com ele, o que fica unido não é como os artelhos unidos, o que fica separado não é como dedos a mais, o que é longo não é considerado excesso e o que é curto não é considerado como falta. Pois as pernas do pato, embora curtas, não podem ser aumentadas sem terror para o pato; e as pernas de uma cegonha embora longas não podem ser encurtadas sem infelicidade para a cegonha. O que é comprido por natureza não deve ser cortado fora e o que é curto por natureza não deve ser alongado. Desse modo evitar-se-ão todos os motivos de tristeza. Suponho que a caridade e o dever estão, seguramente, inclusos na natureza humana. Bem vê quantas preocupações e terrores sofre o homem caridoso! Além disso, separe os artelhos unidos e gemerá de dor; corte o dedo que tem a mais e gritará de dor. Num dos casos, há de mais e no outro, de menos; porém, as preocupações e os terrores serão os mesmos. Ora, os homens caridosos da época presente andam de um lado para o outro com um olhar de aflição dolorosa para os doentes da época, enquanto os que não são caridosos deixam em liberdade os desejos de sua natureza em sua ambição atrás de posição e fortuna. Por conseguinte suponho que a caridade e o dever não estão incluídos na natureza humana. Todavia, desde o tempo das Três Dinastias até hoje, quantas comoções não têm produzido!

Além disso, os que confiam no arco, na linha, no compasso e no esquadro para obter formas corretas, vão contra a constituição natural das coisas. Os que usam cordéis para ligar e cola para juntar as peças, interferem no caráter natural das coisas. Os que procuram satisfazer o espírito do homem engodando-o com cerimônias e música e afetando caridade e devoção, perderam sua natureza original. Há uma natureza original nas coisas. As coisas em sua natureza de origem são curvas sem o auxilio do arco, retas sem linhas, redondas sem compasso e retangulares sem esquadros; elas se ligam sem cola e conservam-se juntas sem cordéis desse modo todas as coisas vivem e crescem partindo de uma coesão íntima e ninguém pode dizer como o fazem todas têm um lugar no esquema das coisas e ninguém pode dizer como vieram a ter seu lugar próprio. Desde tempos imemoriais assim tem sido e não pode ser averiguada a razão. Como então as doutrinas de caridade e dever podem continuar como estão, com muita cola e cordel, nos domínios de Tao e da virtude, para ocasionar confusão e duvida entre a humanidade?

Ora, as menores dúvidas modificam os propósitos do homem e as maiores dúvidas mudam sua natureza. Como o sabemos? Desde o tempo mesmo em que Shun deu a caridade e o dever e lançou o mundo em confusão, os homens têm corrido de um lado para outro e têm se esgotado em sua procura. Não seria então a caridade e o dever o que mudou a natureza do homem?

Desse modo, tenho tentado mostrar (42) que desde o tempo das Três Dinastias em diante, não há um só que não tenha mudado de natureza por meio de certas influências externas. Se for um homem comum morrerá pelo lucro. Se for um estudante, morrerá pela fama. Se tiver nas mãos a jurisdição de uma cidade, perecerá pelas honras de seus ancestrais. Se for um Sábio, morrerá pelo inundo. Os empenhos e as ambições desses homens diferem, porém o dano á sua natureza resultante do sacrifício de suas vidas é o mesmo. Tsang e Ku eram pastores e ambos perderam seus rebanhos. Depois de indagações soube-se que Tsang tinha se abstraído na leitura com o cajado de pastor debaixo do braço, enquanto Ku tinha ido tomar parte nalgumas competições de força. Tinham empregado seu tempo em coisas diferentes, mas o resultado nos dois casos fora a perda do rebanho. Po Yi morreu pela fama ao pé do Monte Shouyang (43). O salteador Cheh morreu por ambição no Monte Tungling. Morreram por motivos diferentes, porém o dano que fizeram às suas vidas e natureza foi, nos dois casos, o mesmo. Por que razão então devemos aplaudir o primeiro e censurar o segundo? Todos os homens morrem por alguma coisa e, no entanto, se um homem morre pela caridade e pelo dever o mundo o qualifica cavalheiro; todavia se ele morre por ambição o mundo o chama de sujeito baixo. A morte sendo a mesma, um é, não obstante, chamado cavalheiro e o outro de caráter desprezível. Porém, quanto ao dano que causaram às duas vidas e naturezas, o salteador Cheh eram exatamente um outro Po Yi. O que adianta então a distinção de "cavalheiro" e de "sujeitinho" entre os dois?

Além disso, enquanto um homem não entregar-se à caridade e ao dever até igualar-se a Tseng ou Shih, não o chamarei bom. Ou quanto ao paladar, enquanto não for igual a Shu Erh (cozinheiro famoso), não o chamarei bom. Ou quanto ao som, enquanto não for igual a Shih K'uang, eu não o chamarei bom. Ou quanto às cores, enquanto não for igual a Li Chu, não o chamarei bom. O que eu chamo bom não é o que é representado pela caridade e pelo dever, mas o que cuida bem da virtude. E o que eu chamo bom não é a chamada caridade e dever, mas o que segue a natureza da vida. O que eu chamo bom para ouvir, não é ouvir os outros, mas ouvir-se a si mesmo. O que chamo bom para ver, não é ver os outros, e sim ver-se a si mesmo. Pois um homem que não se vê a si próprio mas que vê os outros, ou não se conhece a si mesmo e sim os outros, possuindo apenas o que os outros possuem e não possuindo seu próprio eu, faz o que agrada aos outros em vez de agradar à sua própria natureza. Ora, o que agrada aos outros em vez de agradar à sua própria natureza, seja ele o salteador Cheh ou Po Yi, não passa de um extraviado.

Consciente de minhas próprias deficiências a respeito de Tao, não me atrevo a pôr em prática os princípios de caridade e dever, por um lado, nem seguir vida de extravagância, pelo outro.



CASCOS DE CAVALOS

Os CAVALOS têm cascos para carregá-los por sobre as geadas e as neves e pêlo para protegê-los do vento e do frio. Comem relva e bebem água e retesando as caudas, galopam. Tal é a natureza verdadeira dos cavalos. Salões cerimoniosos e grandes mansões não são para eles.

Um dia Polo (famoso treinador de cavalos) apareceu dizendo - "Sei cuidar muito bem de cavalos". Assim escovou-lhes o pêlo e os tosquiou, aparou-lhes os cascos e os marcou. Pôs-lhes cabrestos pelos pescoços e grilhões em suas pernas e numerou-os, segundo os estábulos. O resultado foi que, em cada grupo de dez, dois ou três morreram. Depois, fê-los passar fome e sede, fê-los trotar e galopar e ensinou-os a correr em formação com a infelicidade de ostentar bridões com borlas na testa e recear o chicote com nós por trás, até que mais de metade morreu.

O oleiro diz "Sei trabalhar bem com o barro. Se o quero redondo, uso compasso; se quero retangular uso o esquadro". O carpinteiro diz - "Sei trabalhar bem a madeira. Se a quero em curva, uso o arco; se em linha reta, uso a régua". Mas como é que podemos pensar que a natureza do barro e da madeira desejam a aplicação do compasso e do esquadro, do arco e da régua? Não obstante, durante muitos anos Polo foi exaltado por sua perícia em treinar cavalos, e oleiros e carpinteiros por sua habilidade com o barro e a madeira. Os que dirigem (governo) os negócios do império cometem o mesmo erro.

Penso que aquele que sabe como governar o império não deve fazê-lo. Porque o povo tem certos instintos naturais - tecem as roupas e se vestem, lavram os campos e se alimentam. Esse é o instinto comum do qual todos têm sua parte. Tal instinto pode ser chamado "no Céu nascido". Assim, nos dias da natureza perfeita, os homens eram calmos nos movimentos e serenos no olhar. Naquele tempo não havia caminhos nas montanhas, nem botes ou pontes sobre as águas. Todas as coisas produziam-se naturalmente. Os pássaros e as feras se multiplicavam; as árvores e os arbustos medravam. Dessa sorte, acontecia que as aves e as feras podiam ser levadas pela mão e podia-se subir e espiar para dentro do ninho da pêga. Pois nos dias da natureza perfeita, o homem vivia junto com as aves e as feras e não havia distinção de espécie entre eles. Quem pode saber as distinções entre os gentis homens e os homens do povo? Sendo todos igualmente sem desejos, permaneciam num estado de integridade natural. Nesse estado de integridade natural, o povo não perdia sua natureza (original).

E depois, quando apareceram os Sábios, rastejando por caridade e mancando com o dever, a dúvida e a confusão entraram no espírito dos homens. Eles disseram que era preciso alegrá-los por meio da música e criaram as distinções por meio de cerimônias, e o império dividiu-se contra si mesmo. Sem cortar a madeira bruta, quem faria os navios de sacrifício? Se o jade branco não fosse cortado, quem poderia fazer as insígnias reais da corte? Não sendo destruídos Tao e a virtude, que utilidade teriam a caridade e o dever? Se não se perdessem os instintos naturais dos homens, que necessidade haveria de música e cerimônias? Se as cores não se confundissem, quem precisaria de decorações? Se as cinco notas não se confundissem, quem adotaria os seis diapasões? A destruição da integridade natural das coisas para a produção de artigos de várias espécies - eis a falta do artífice. A destruição de Tao e da virtude a fim de introduzir a caridade e o dever - eis o erro dos Sábios. Os cavalos vivem em terra sêca, comem relva e bebem água. Quando lhes agrada, esfregam os pescoços uns nos outros. Quando se encolerizam, viram-se e dão com os cascos uns nos outros. Até aí são apenas levados por seus instintos naturais. Porém, com bridão e freio, com uma placa de metal de feitio de lua sobre suas testas, aprendem a lançar olhares maldosos, a virar as cabeças para morder, a esbarrar no outro animal da parelha, a tomar o freio nos dentes ou fugir com a cabeça ao bridão. Desse modo, ficam com mentalidade e gestos iguais aos dos ladrões. Eis a falta de Polo.

Nos dias de Ho Hsü (44) os homens nada faziam de particular em seus lares e saiam a passeios sem destino. Tendo alimentos, regozijavam-se; dando pancadinhas na barriga andavam de um lado para outro. As capacidades naturais desses homens os levavam até aí. Os Sábios vieram depois e os fizeram curvar-se e abaixar-se com cerimônias e música, a fim de regular as formas externas de trato social e ostentaram a caridade e o dever diante deles com o fito de conservar-lhes os espíritos submissos. Depois o povo começou a trabalhar e desenvolveu gosto pela ciência, e começou a lutar entre si na ambição do lucro, para a qual não há fim. Eis o erro dos Sábios.



ABRINDO COFRES, OU UM PROTESTO CONTRA A CIVILIZAÇÃO.

As precauções tomadas contra ladrões que abrem cofres, examinam sacolas, ou saqueiam gavetas, consistem em mantê-los com cordas e trancá-los com fechos e cadeados. É a isso que o mundo chama sagacidade. Porém, chega um ladrão musculoso e leva a gaveta nos ombros, com o baú e a sacola, e corre, fugindo com tudo. Seu único receio é que as cordas, fechos e cadeados não sejam bastante fortes! Por conseguinte, o que o mundo costuma chamar sagacidade não é simplesmente assegurar as coisas para um ladrão musculoso? E atrevo-me a afirmar que nada daquilo que o mundo chama sagacidade é outra coisa senão poupar para os ladrões fortes; e nada do que o mundo chama sabedoria prudente é outra coisa senão entesourar para os ladrões fortes.

Como poderei prová-lo! No Estado de Ch'i, as cidades vizinhas divisavam-se e podia ouvir-se o uivar dos cães e o cantar do galo da cidade vizinha. Os pescadores lançavam as redes e os lavradores aravam a terra numa extensão de mais de dois mil li. Dentro de seus quatro limites, havia um templo ou relicário, um deus adorado, ou uma aldeola, condado ou distrito governado segundo as regras estabelecidas pelos Sábios. Contudo uma manhã (45) Tien Ch'engtse matou o governador de Ch'i e roubou-lhe o reino. E não somente seu reino apenas, como também as sutilezas de sabedoria que ele tão bem aprendera com os Sábios; desse modo, embora T'ien Ch'engtse adquirisse a reputação de ladrão, ele viveu em segurança e com tanto conforto como sempre tinham vivido Yao ou Shun. Os pequenos Estados não se atreviam a censurá-lo, nem os grandes Estados ousavam puni-lo e durante doze gerações seus descendentes governaram Ch'i (46). Não foi o mesmo que roubar o Estado de Ch'i e a sutileza da sabedoria dos Sábios a fim de preservar a vida dos ladrões? Atrevo-me a perguntar se houve jamais alguma coisa daquilo que o mundo considera como grande habilidade e que não é senão poupar para os ladrões fortes, e houve jamais aquilo que o mundo chama sabedoria prudente que não fosse amontoar para os ladrões fortes?

Como poderei provar isso? Há muitos séculos, Lungfeng foi decapitado, Pikan foi estripado, Changhung foi esquartejado, Tsehsü lançado às ondas. Todos esses quatro eram homens de saber, porém não puderam impedir suas mortes por castigo.

Um aprendiz do salteador Cheh fez a seguinte pergunta -"Há então Tao (princípios morais) entre os ladrões?"

- "Diga-me se há alguma coisa onde não exista Tao", replicou Cheh. "Há o caráter sábio dos ladrões, pelo qual a presa é localizada, a coragem de ir em primeiro lugar e o cavalheirismo de sair por último. Há a habilidade de calcular o sucesso e a bondade na divisão eqüitativa dos saques. Jamais houve ainda um grande salteador que não possuísse essas cinco qualidades. É evidente, portanto, que sem os ensinamentos dos Sábios, os homens bons não poderiam conservar suas posições, e sem os ensinamentos dos Sábios, o salteador Cheh não alcançaria seus fins. Desde que os homens bons são poucos e os maus formam a maioria, o bem que Sábios fazem ao mundo é pequeno e é grande o mal. Portanto já se disse - "Se os lábios se revirassem, os dentes esfriariam. Foi a pouca densidade dos vinhos de Lu que motivou o cerco de Hantan (47)".

Quando os Sábios se erguem, aparecem os ladrões de toda espécie. Oprima os Sábios e deixe os ladrões em liberdade e então o império ficará em ordem. Quando a fonte pára, os barrancos secam e quando a elevação rui, os abismos se enchem de terra. Quando os Sábios morrem, os ladrões não se mostram, mas o império descansará em paz. Por outro lado, se os sábios não fugirem precipitadamente, tampouco os ladrões decairão. Tampouco se você dobrar o numero de Sábios com o qual governará o império fará mais do que dobrar os lucros do salteador Cheh.

Se as fangas e os quartos - de - fanga são usados para medidas, os quartos - de - fanga e as fangas serão roubadas também, juntamente com o arroz. Se as balanças são usadas para pesar, poderão também ser roubadas juntamente com os bens. Se as talhes e os selos são usadas por boa fé, as talhas e os selos serão roubados também. Se a caridade e o dever são usados como princípios morais, a caridade e o dever serão roubados também.

Como assim? Roube um gancho e será pendurado num gancho; roube um reino e será feito duque. (Os ensinamentos de) caridade e dever ficam nos domínios do duque. Não é verdade, pois, que são ladrões da caridade, do dever e da sabedoria dos Sábios?

Assim acontece que os que seguem os caminhos do roubo são promovidos a príncipes e duques. Os que se sujeitam a roubar caridade e dever junto com medidas, balanças, talhas e selos, podem ser dissuadidos de obter alguma recompensa com titulo oficial e com uniforme, mas não desanimam com medo dos aguçados instrumentos de castigo. Tal fato duplicando os lucros dos salteadores, como Cheh, e tornando possível livrar-se deles, é culpa dos Sábios.

Portanto foi dito "Os peixes devem ser deixados na água, as armas afiadas de um estado devem ser postas onde ninguém as veja (48)". Esses Sábios são as armas afiadas do mundo; não devem ser mostrados ao povo.

Mandem embora a sabedoria e descartem-se da ciência (49) e os ladrões deixarão agir! Joguem fora o jade e destruam as pérolas, e os pequenos ladrões cessarão suas atividades. Queimem as talhas e quebrem os selos e o povo voltará à sua integridade singular. Destrua as medidas e despedace as balanças, e o povo não discutirá sobre quantidades. Calque aos pés todas as instituições dos Sábios, e o povo começará a preparar-se para discutir (Tao). Misture os seis diapasões, entregue às chamas as flautas e os instrumentos de corda, tape os ouvidos do cego Shih K'uang e cada homem conservará seu próprio sentido de audição. Ponha fim às decorações, confunda as cinco cores, cole os olhos de Li Chu e cada homem conservará seu próprio sentido de visão. Destrua arcos e réguas, ponha fora esquadros e compassos, dê uma pancada forte nos dedos de Ch'ui, o artífice, e cada homem usará sua habilidade natural. Donde o ditado "A grande habilidade aparece como falta de arte (50)". Ponha fim às atividades de Tseng e Shih (51), tape as bocas de Yang Chu e Motse, descarte-se da caridade e do dever, e a virtude do povo chegará à Unidade Mística (52).

Se cada homem guardar seu próprio sentido de visão, o mundo fugirá de ser queimado. Se cada homem conservar seu próprio sentido da audição, o mundo escapará de embaraços. Se cada homem conservar sua inteligência o mundo escapará de confusão. Se cada homem conservar a própria virtude, o mundo evitará desviar-se do caminho verdadeiro. Tseng, Shih, Yang, Shih K'uang Ch'ui e Li Chu foram todos pessoas que desenvolveram seus caracteres externos e envolveram o mundo na confusão presente de modo que as leis e estatutos de nada adiantam.

Nunca ouviu falar de Era da Natureza Perfeita? Nos dias de Yunch'eng, Tat'ing, Pohuang, Chungyang, Lilu, Lihsü, Hsienyuan, Hohsü, Tsunlu, Chuyung, Fuhsi, e Shenning (53), o povo dava nós para fazer cálculos. Apreciavam os alimentos, embelezavam as vestes, viviam satisfeitos com seus lares e achavam prazer em seus hábitos. As povoações vizinhas viam-se umas às outras de modo que podiam ouvir o latir dos cães e o cantar dos galos dos vizinhos e o povo, até o fim de seus dias, nunca esteve fora dos limites de sua própria região (54). Naqueles dias havia ainda, na verdade, a paz perfeita.

Mas hoje em dia, qualquer um pode fazer o povo torcer o pescoço e ficar de pé sobre as pontas dos dedos, dizendo - "Em tal e tal lugar há um Sábio". Imediatamente reúnem algumas provisões e apressam-se a partir, negligenciando os pais que ficam em casa e os negócios do patrão, indo a pé através dos territórios de príncipes e caminhando até centenas de milhas de distância. Tal é o efeito mau produzido pela ânsia de saber dos governantes. Quando os governadores desejam obter conhecimentos e negligenciam Tao, o império é dominado pela confusão.

Como posso mostrar isso? Quando o conhecimento de arcos e bestas e laços e setas aumenta, então eles levam a confusão para o meio das aves do ar. Quando o conhecimento sobre anzóis e iscas e redes e armadilhas cresce, então levam a confusão para os peixes que vivem nas profundidades. Quando o conhecimento de cercas e redes e armadilhas cresce, então eles levam a confusão para as feras do campo. Quando a sagacidade e a impostura e a petulância e os sofismas do "difícil" e do "branco" e de identidade e diferenças aumentam em número e variedade, então eles dominam o mundo com a lógica.

Por isso é que há sempre o caos no mundo e o amor ao saber está sempre na base. Pois todos os homens esforçam-se para apoderar-se do que não sabem, enquanto nenhum deles se esforça para alcançar o que já sabe; e todos procuram desacreditar aquilo em que é perito. Eis porque há o caos. Assim, acima de nós, o esplendor dos corpos celestes ofusca-se; em baixo, o poder da terra e da água consome-se, ao passo que no meio a influência das quatro estações é anulada. Não há um verme delgado que se mova na terra ou um inseto que voe no ar que tenha perdido sua natureza original. Tal é. Na verdade, o caos do mundo causado pela ânsia de saber!

Desde mesmo o tempo das Três Dinastias até agora, tem sido assim. Os simples e os que não têm culpa são postos de lado; os espertos e os perspicazes têm sido exaltados. A inação tranqüila deu lugar ao amor da disputa; e a disputa só é bastante para lançar o caos sobre o mundo.



SOBRE A TOLERÂNCIA

TEM HAVIDO algo como tolerância e como deixar de afligir a humanidade; nunca houve um governo para a humanidade. O deixá-la em paz decorre do receio de que as disposições naturais dos homens sejam pervertidas e a tolerância brota do receio de que seu caráter seja corrompido. Mas, se as disposições naturais não forem pervertidas nem o caráter corrompido, que necessidade há de governá-la?

Há muito, quando Yao governava o império, ele fez com que o povo vivesse feliz; como conseqüência, o povo lutava para ser feliz e tornava-se inquieto. Quando Chieh governava o império fez o povo viver miseravelmente; como conseqüência, o povo considerava a vida um fardo e vivia descontente. A inquietude e o descontentamento são subversivos da virtude; e sem virtude jamais tem existido o que chamamos estabilidade.

Quando o homem se regozija grandemente, gravita em direção a yang (pólo positivo). Quando está muito encolerizado, gravita em direção a yin (pólo negativo). Se o equilíbrio do positivo e do negativo for perturbado, as quatro estações mudarão e o equilíbrio do calor e do frio será destruído, e conseqüentemente o próprio homem sofrerá fisicamente. Esse equilíbrio faz com que os homens se alegrem e se entristeçam desordenadamente, que vivam sem ordem, que sejam atormentados pelos seus pensamentos e percam a forma de conduta. Quando isso acontece, então todo o mundo se agita com revoltas e descontentamento e temos homens como o salteador Cheh, como Tseng e como Shih. Ofereça o mundo inteiro como recompensa para os bons e ameace os maus com os horrorosos castigos do mundo inteiro, e ainda assim será insuficiente (para reformá-los). Conseqüentemente, com o mundo inteiro não se pode obter suficiente indução ou dissuasão para agir. Desde as Três Dinastias até agora, o mundo tem vivido precipitadamente de promoções e castigos. Qual a probabilidade deixada para o povo de viver regularmente sua vida?

Além disso, o amor (super - refinamento) da visão conduz à sedução em cores; o amor da audição leva à sedução em sons; o amor da caridade leva á confusão em virtude; o amor do dever leva à perversão dos princípios; o amor das cerimônias (li) leva à forma comum de perícia técnica; o amor da música leva à prostituição comum do pensamento; o amor da sabedoria leva a uma das formas de arte; e o amor ao saber conduz a certa forma de crítica. Se o povo tem permissão de viver fora do teor de suas vidas, os oito exemplos de cima podem ser ou não ser; não importa. Mas se o povo não obtém permissão de viver o teor de sua vida, então essas oito condições causam descontentamento, esforço e disputa, e lançam o mundo no caos.

Todavia o mundo dedica-lhes culto e amizade. Na verdade, o caos mental do mundo tem bases profundas. É simplesmente um engano passageiro que pode ser removido facilmente? Contudo eles observam os jejuns antes das discussões, curvam-se sobre os joelhos para praticá-los, e cantam, e batem tambores e dançam para celebrá-los. O que posso fazer a respeito disso?

Por conseguinte, quando um homem de trato é inevitavelmente forçado a tomar posse do governo do império, não há nada melhor do que a inação (deixá-lo só). Por meio da inação somente pode ele permitir ao povo viver fora do teor mesmo de sua vida. Portanto, aquele que considera o mundo como seu próprio eu, pode ser encarregado do governo do mundo; e o que ama o mundo como seu próprio eu, pode ser encarregado de cuidar do mundo (55). Por conseguinte, se o homem de trato pode abster-se de perturbar a economia interna do homem, e de glorificar os poderes de visão e audição, ele pode sentar-se quieto como um corpo sem vida ou meter-se em ação como um dragão, ficar silente como o vácuo ou falar com a voz de um trovão, os movimentos de seu espírito despertam o mecanismo natural do Céu. Ele pode descansar calmamente e preguiçosamente nada fazer enquanto todas as coisas vão sendo trazidas à maturidade e à prosperidade. Que necessidade, pois, haveria de eu compreender o governo do mundo?

***

Ts'ui Chü perguntou ao Lao Tan (56) - "Se o império não deve ser governado, como manterão bondosos os corações dos homens?"

-"Tome cuidado", replicou Lao Tan, "de não interferir com a bondade natural do coração do homem. O coração do homem pode ser subjugado ou instigado. Em cada um desses casos o resultado é fatal. Por meios gentis, o coração mais empedernido pode ser abrandado. Mas tentar cortá-lo e poli-lo será fazê-lo cintilar. como o fogo ou gelar como gêlo. Num piscar de olhos, ele ultrapassará os limites dos Quatro Mares. Em repouso, fica profundamente quieto; em movimento, voa aos céus. Tal como um cavalo indomável, não pode ser mantido no freio. Tal é o coração humano".

Há muito tempo passado, o Imperador Amarelo interferiu pela primeira vez na bondade natural do coração do homem, por meio da caridade e do dever. Em conseqüência, Yao e Shun gastaram os cabelos das pernas e a carne dos braços esforçando-se para alimentar os corpos de seus súditos. Torturavam a economia interna do povo a fim de sujeitá-lo à caridade e ao dever. Esgotaram as energias do povo para viver de acordo com as leis e os estatutos. Mesmo assim não foram bem sucedidos. Logo depois Yao (teve que) encerrar Huantou no Monte Ts'ing, exilar os chefes dos Três Miaos e seus povos nas Três Weis e banir o Ministro do Trabalho para Yutu, o que prova não ter tido êxito. Quando na época dos Três Reis, (57) o império estava num estado de fomento. Entre os homens maus contavam-se Chieh e Chie; entre os bons, Tseng e Shih. Pouco a pouco os confucianistas e os motseanistas apareceram; e então começou a confusão entre a alegria e a cólera, o engano entre os simples, e os espertos, a recriminação entre os virtuosos e os viciosos, a calúnia entre os honestos e os mentirosos, e a ordem no mundo entrou em colapso.

Quando a grande virtude perde sua unidade, as vidas dos homens malogram-se. Quando há uma ansiedade pela posse de conhecimentos, os desejos do povo sempre além de suas possibilidades. A coisa imediata é inventar machados e serras, matar pelas leis e estatutos, desfigurar por meio de cinzéis e sovelas. O império ferve com descontentamento e atribuem a causa desse descontentamento aos que interferiram na bondade natural do coração do homem.

Em conseqüência, os homens virtuosos procuram refúgio nas cavernas das montanhas, enquanto os governantes dos grandes estados sentam-se trêmulos nos salões de seus ancestrais. Depois, quando os homens mortos jazem empilhados uns sobre os outros, quando os prisioneiros em cangas comprimem-se em multidão e criminosos condenados são vistos por toda parte, então os confucionistas e os motseanistas movem-se de um lado para outro e enrolam as mangas no meio de grilhões e cadeados! Ai de nós! Eles não sabem o que é a vergonha nem tampouco sabem o que é enrubescer!

Enquanto eu puder dizer que a sabedoria dos Sábios não é a que aperta as cangas, e que a caridade do coração e o dever para o vizinho de cada um não são fechos para grilhões, como poderei saber que Tseng e Shih não são as setas sibilantes (58) (anunciadoras) de (ladrões) Chieh e Chieh? Portanto diz-se "Abandone a sabedoria e separe-se do conhecimento, e o império descansará em paz".

O Imperador Amarelo ocupou o trono durante dezenove anos, e suas leis dominavam todo o império. Ouvindo dizer que Kuangch'engtse estava vivendo no Monte K'ungt'ung, foi até lá vê-lo e disse - "Disseram-me que o senhor está na posse do Tao perfeito. Permite-me perguntar-lhe qual é a essência desse Tao perfeito? Desejo obter a essência do universo para assegurar boas colheitas e alimentar meu povo. Gostaria também de controlar os princípios yin e yang para satisfazer a vida de todas as coisas viventes".

- "O que está me perguntando," replicou Kuangch'engtse", e simplesmente a borra das coisas. O que você deseja controlar são fatores desintegrados. Desde que o império vem sendo governado por você, as nuvens têm se desfeito em chuva antes de estarem pesadas, a folhagem das árvores tem caído antes de ficar amarela e o brilho do sol e da lua tem empalidecido constantemente. Você tem a superficialidade de espírito de um tagarela fútil. Como pois acha-se digno de falar do Tao perfeito?"

O Imperador Amarelo retirou-se. Resignou ao trono. Construiu para si uma cabana solitária e deitou-se na palha pura. Durante três meses ficou em reclusão e em seguida foi ver novamente Kuangch'engtse.

Esse último estava deitado com a cabeça virada para o sul. O Imperador Amarelo aproximou-se de rastos sobre os joelhos. Beijou duas vezes o solo, disse - "Disseram-me que tem a posse do Tao perfeito. Posso perguntar-lhe como pôr em ordem a vida de uma pessoa de modo que ela possa viver vida longa?"

Kuangch'engtse deu pulo sobressaltado. - "Bela pergunta, na verdade !" exclamou. "Venha e falar-lhe-ei sobre o Tao perfeito. A essência do perfeito Tao é profundamente misteriosa; sua magnitude perde-se na obscuridade".

- "Nada ver; nada ouvir; conserve o espírito em quietude e seu corpo se conservará segundo sua vontade".

- "Fique tranqüilo, seja puro; não fatigue seu corpo, não perturbe sua essência vital e viverá eternamente".

- "Pois se os olhos nada virem, e os ouvidos nada ouvirem, e a mente nada pensar, seu espírito permanecerá em seu corpo, e o corpo viverá para sempre, desse modo".

- "Preze o que tem em seu íntimo e conserve fora o que está fora: pois, muito saber é uma maldição".

- Então levá-lo-ei à morada da Grande Luz para chegar ao Platô do Yang Absoluto. Levá-lo-ei pela Porta do Grande Desconhecido ao Platô do Yin Absoluto.

- "O Céu e a Terra têm suas funções separadas. O Yin e o Yang têm suas raízes escondidas. Cuide cuidadosamente do corpo e as coisas materiais prosperarão por si mesmas".

- "Eu guardo o Único original e descanso em harmonia com as exterioridades. Desse modo tenho sido capaz de viver esses mil e duzentos anos e meu corpo não envelhece".

O Imperador Amarelo beijou duas vezes o chão e disse - "Certamente Kuangch'engtse, é Deus" (59) ...

- "Venha, disse Kuangch'engtse," eu lhe direi. Isso é eterno; e, no entanto, todos os homens o julgam mortal. Isso é infinito: e, no entanto, todos os homens o julgam finito. Os que possuem o meu Tao são príncipes nesta vida e governantes na outra vida. Os que não possuem o meu Tao avistam a luz do dia nesta vida e tornam-se torrões de terra na outra vida.

- "Hoje em dia, todas as coisas que vivem nascem do pó e ao pó volvem. Mas eu o levarei através os portais da Eternidade para vaguear nas grandes selvas do Infinito. Minha luz é a luz do sol e da lua. Minha vida é a vida do Céu e da Terra. Antes de mim tudo era nebulosa; depois de mim tudo será trevas, o desconhecido. Os homens podem morrer todos, porém eu durarei para sempre".

Quando Nuvens Gerais estava em viagem para o oriente, passou pelo meio dos galhos de Fuyao (árvore mágica) e encontrou-se, por acaso, com a Grande Nebulosa. Essa ultima estava dando palmadinhas nas coxas e pulando de um lado para outro. Quando Nuvens Gerais a viu, parou como quem se tivesse perdido e ficou quieta, dizendo - "Quem é você, velha, e o que está fazendo aqui?"

- "Andando à toa!" respondeu Grande Nebulosa, continuando a dar palmadinhas nas coxas e a pular.

- "Queria perguntar-lhe uma coisa," falou Nuvens Gerais.

- "Uh!" Pronunciou Grande Nebulosa.

- "Os espíritos do Céu não estão em harmonia", disse Nuvens Gerais, "os espíritos da Terra foram suprimidos; as seis influências (60) do tempo não trabalham juntas e as quatro estações não mais se mostram regulares. Desejo misturar a essência das seis influências e nutrir todos os seres vivos. O que devo fazer?"

- "Não sei! Não sei!" Bradou Grande Nebulosa sacudindo a cabeça enquanto continuava a dar palmadinhas nas coxas e a pular.

Assim Nuvens Gerais não insistiu na pergunta. Três anos depois, quando passava para leste atravessando as planícies de Sunga, deu, novamente, de frente com Grande Nebulosa. A primeira estava mais do que alegre e correu para a outra dizendo - "Sua Santidade (61) esqueceu-se de mim? Sua Santidade esqueceu-se de mim?"

Duas vezes beijou o chão e desejou ter permissão para interrogar Grande Nebulosa; mas essa última disse - "Vagueio sem saber o que quero. Lanço-me de um lado para outro sem saber para onde vou. Simplesmente ando errante presenciando acontecimentos inesperados. O que saberia eu?"

- "Também me considero como impelida de um lado para outro", respondeu Nuvens Gerais; "mas o povo segue meus movimentos, não posso fugir ao povo e o que faço os homens seguem com atenção. Receberia satisfeita algum conselho".

- "Que o esquema do império está em confusão", disse Grande Nebulosa, "que as condições de vida são violadas, que o desejo do Céu Escuro não foi atendido, que as feras dos campos estão dispersas, que os pássaros no ar gritam à noite, que a geada cai com violência sobre as árvores e a relva, que a destruição se dissemina entre as coisas que rastejam - isso ai de nós! é culpa dos que governam os outros".

- "É verdade", tornou Nuvens Gerais, "mas o que devo fazer?"

- "Ah" exclamou Grande Nebulosa, "fique quieta e vá para casa em paz!"

- "Não têm sido muitas as vezes em que," tornou Nuvens Gerais, "eu tenho me encontrado com sua Santidade. Muito satisfeita receberia seus conselhos".

- "Ah," falou Grande Nebulosa, "alimente seu coração. Descanse em inação e o mundo se reformará por si. Esqueça seu corpo e ponha de lado a inteligência. Desobrigue a mente e livre o espírito. Faça-se vácuo e dispa-se da alma. Desse modo as coisas crescerão e prosperarão e volverão às suas Raízes. Volvendo as suas Raízes sem o saber, o resultado será um todo sem forma que jamais será cortado. Sabê-lo, será extirpá-lo. Nada pergunte sobre seu nome, nada indague sobre sua natureza e todas as coisas florirão por si".

- "Sua Santidade", disse Nuvens Gerais, "informou-me sobre o poder e ensinou-me a silenciar. O que eu procurava há muito, encontrei agora". Desse modo curvou-se duas vezes e despediu-se.

Todas as pessoas que habitam este mundo alegram-se quando vêem que as outras são como elas mesmas e fazem objeções quando as outras são diferentes delas mesmas. Os que fazem amigos com sua semelhança e não fazem amigos com suas dessemelhanças são influenciados pelo desejo de ficarem acima dos demais. Mas como os que desejam ser mais do que os outros podem sempre ficar acima dos outros? Antes de basear os julgamentos de alguém pelas opiniões de muitos, deixe que cada qual olhe para seus próprios interesses. Mas os que desejam governar reinos agarram-se às vantagens de (os sistemas de) os Três Reis sem verem as calamidades que envolvem. De fato, eles estão confiando as riquezas de um país à sorte, mas qual o país que seria feliz bastante de modo a escapar da destruição? As probabilidades de preservá-los não chegariam a uma em dez mil enquanto as probabilidades de destruí-los são de dez mil para nada e até mais. Tal, ai de nós! É a ignorância dos que governam.

Porque ter um território é ter algo de grande. Aquele que tem algo de grande não deve considerar as coisas materiais como coisas materiais. Somente não olhando as coisas materiais pode alguém ser senhor das coisas. O princípio de olhar para as coisas materiais como se não fossem coisas reais não está afeito ao simples governo do império. Tal pessoa pode vaguear à vontade entre os seis limites de espaço ou viajar acima dos Nove Continentes, desembaraçado e livre. Isto é ser o Único. O Único é o maior dentre os homens.

A doutrina do grande homem é (fluida) como sombra a formar, como eco a soar. Pergunte e ela responderá, preenchendo sua capacidade como assistente da humanidade. Silenciosa em repouso, sem objetivo em movimento, tira-lo-á da confusão de suas vindas e idas para vagar pelo Infinito. Sem forma em seus movimentos, é eterno com o sol. Quanto à sua existência real, sujeita-se aos padrões universais. Por meio da sujeição aos padrões universais, esquece-se de sua própria individualidade. Porém se se esquece de sua individualidade como pode ver em seus bens aquilo que possui? Os que viam bens, em bens, foram os homens sábios de antigamente. Os que não vêem nos bens, os bens, são amigos do Céu e da Terra.

O que é baixo, mas que deve ser deixado isolado, é matéria. O que é humilde, mas ainda deve ser seguido, é o povo. O que está sempre lá, mas ainda tem que ser esperado, são os negócios. O que é inadequado, mas ainda tem que ser promulgado, é a lei. O que é estranho a Tao, mas ainda exige nossa atenção, é o dever. O que é inclinação, mas precisa ser alargado, é a caridade. O vulgar, mas precisando ser engrandecido, eis a cerimônia. Contida interiormente, mas precisando ser elevada, eis a virtude. Único, mas não ser sem modificação. Eis Tao. Espiritual, contudo sem ser desprovido de ação, eis Deus.

Portanto o Sábio ergue os olhos para Deus, mas não se oferece para ajudar. Aperfeiçoa a virtude, mas não se envolve. Guia-se por Tao, mas não faz planos. Identifica-se com a caridade, mas não confia nela. Desempenha seus deveres para com os vizinhos, mas não estabelece armazém com eles. Corresponde à cerimônia sem evitá-la. Empreende negócios sem fazê-los decair e distribui a lei sem confusão. Confia no povo e não o menospreza. Acomoda-se ao assunto e não o ignora. As coisas não são dignas de serem esperadas, contudo é preciso esperá-las. Aquele que não compreende Deus não será um puro de caráter. Aquele que não tem clara apreensão de Tao não saberá onde começar. E naquele que não é iluminado por Tao - ai dele, na verdade!

Então, o que é Tao? Há o Tao de Deus e há o Tao do homem. A honra por meio da inação provém do Tao de Deus: o embaraço por meio da ação provém do Tao do homem. O Tao de Deus é fundamental: O Tao do homem é acidental. A distância que os separa é grande. Que todos nós prestemos atenção a isso!



INUNDAÇÕES OUTONAIS (62)

NO TEMPO das inundações outonais, uma centena de cursos d'água despejava-se no rio. Esse engrossava suas águas lodosas, de modo que era impossível diferençar uma vaca de um cavalo desde que ficassem na margem oposta ou nas ilhotas.

Então o Espírito do Rio riu de alegria achando que toda a beleza da terra estava reunida nele. Corrente abaixo, ele viajava em direção ao oriente até chegar ao Mar Norte. Ali, olhando bem para leste e não vendo limite para aquela vastidão, principiou a mudar de pensar. E ao lançar os olhos pelo oceano, suspirou e disse ao Mar Norte Yo -"Um provérbio comum diz que aquele que já ouviu muitas verdades crê que ninguém se iguale a ele. Fui um desses. Antigamente quando ouvia as pessoas caluniando o saber de Confúcio ou depreciando o heroísmo de Po Yi, eu não acreditava. Mas agora, depois de olhar sua vastidão - ai de mim! Se não tivesse chegado até sua morada, teria tido para sempre um sorriso de desprezo para os que têm grande ilustração".

A isso Mar Norte Jo (o Espírito do Oceano) replicou - "Você não pode falar de oceano a um sapo das fontes, porque ele tem por limite o lugar onde mora. Não pode falar de gêlo a um inseto do verão, porque ele é limitado pela vida curta que tem. Não pode falar de Tao a um pedagogo, porque é limitado por seus conhecimentos. Porém agora que você emergiu da esfera estreita em que vivia e já viu o grande oceano, reconhecendo sua própria insignificância, posso falar-lhe dos grandes princípios".

- "Não há porção d'água sob o dossel do céu que seja maior do que o oceano. Todos os cursos d'água deságuam nele sem cessar e no entanto ele não transborda. Está sendo continuamente esgotado pelo Podão de Baixo (63), e contudo jamais esvazia. A primavera e o outono não trazem mudanças; as inundações e as secas são igualmente desconhecidas. E assim ele é imensuravelmente superior aos simples rios e correntes d'água. No entanto, jamais me atrevi a jactar-me disso. Pois me tenho em conta, entre as coisas que se moldam no universo e recebem vida do yin e do yang, de um seixo ou uma arvorezinha sobre uma enorme montanha. Apenas tenho consciência plena de minha própria insignificância. Como posso ficar convencido e jactar-me de minha grandeza?

- "Os Quatro Mares não são, em comparação com o universo, uns buracos de formiga num pântano? O Reino Médio não é como uma semente de joio num celeiro em comparação com o oceano que o circunda? O homem não passa de uma pequena coisa entre a miríade de coisas criadas. E de todos os que habitam os Nove Continentes, vivem dos frutos da terra com o oceano que o circunda? O homem não passa de um só indivíduo. Comparado com toda a criação não é o homem um fio de pêlo sobre o corpo de um cavalo?

- "A sucessão dos Cinco Governadores, (64) a competência dos Três Reis, os sentimentos dos de coração bondoso, o trabalho dos administradores não passam disso e nada mais. Po Yi recusou o trono em troca da fama. Chungni (Confúcio) discursou para ter a reputação de sábio. Essa superestimação do eu por parte deles - não é muito parecida com a sua anterior autoestimação em referência à água?"

- "Muito bem," replicou o Espírito do Rio, "devo então considerar o universo tão grande e o fio de cabelo tão pequeno?"

- "Absolutamente", declarou o Espírito do Oceano. "As dimensões têm limites, o tempo é infinito. As condições não são constantes; os termos não são definitivos. Assim, o homem sábio olha para o espaço e não considera o pequeno como muito pequeno, nem o grande como muito grande, pois ele sabe que não há limite para dimensões. Volta os olhos para o passado e não se lamenta do que já passou há muito, nem se alegra pelo que está mais perto; pois sabe que o tempo não tem fim. Investiga a plenitude e a decadência e portanto não se rejubila caso seja bem sucedido, nem se lamenta se falha; pois sabe que as condições não são constantes. Aquele que apreende claramente o esquema da existência, não se regozija sobre a vida, nem se aflige pela morte; pois sabe que os termos não são os últimos".

- "O que o homem sabe não é para comparar-se com o que ele não sabe. O tempo de sua existência nada é, comparado com o tempo de sua não-existência. Esforçar-se para exaurir o infinito por meio do infinitesimal, necessariamente o torna confuso e infeliz. Como, pois, pode alguém ser capaz de dizer que um fio de cabelo é o ne plus ultra da pequenez, ou que o universo é o ne plus ultra da grandeza?"

- "Os dialéticos do dia", replicou o Espírito do Rio, "dizem todos que o infinitesimal não tem forma e que o infinito está além de medida. É verdade?"

- "Se olharmos para o grande do ponto de vista do pequeno", disse o Espírito do Oceano, "não podemos alcançar seu limite; e se olharmos para o pequeno do ponto de vista do grande, ele decepciona nossa vista. O infinitesimal é a subdivisão do pequeno; o colossal é a extensão do grande. Nesse sentido os dois caem em categorias diferentes. Isso se baseia na natureza das circunstâncias. Ora, a pequenez e a grandeza pressupõem forma. O que não tem forma não pode ser dividido por números e o que fica acima de medida não pode ser medido. A grandeza de qualquer coisa pode ser motivo de discussão e a pequenez de qualquer coisa pode ser imaginada mentalmente Mas o que não pode ser nem um tópico de discussão, nem mentalmente imaginado não pode ser considerado como tendo grandeza ou pequenez.

- "Por conseguinte, o homem verdadeiramente grande não injuria os outros e não se crê caridoso e misericordioso. ele não procura ganho, porém não despreza os servos que o fazem. Não luta pela riqueza, porém não dá grande valor à sua modéstia. Não pede auxílio de ninguém, mas não se orgulha de sua auto- segurança, nem despreza os ambiciosos. Age diferentemente da multidão comum, mas não dá grande valor em ser diferente ou excêntrico; nem porque age com a maioria, despreza os que lisonjeiam alguns. Os títulos e os proveitos do mundo não lhe são motivo de alegria; seus castigos e vergonha não são causa de desgraça. Sabe que o direito e o errado não podem ser distinguidos, que o grande e o pequeno não podem ser definidos.

- "Ouvi dizer" - O homem de Tao não tem (interesse por) reputação; o verdadeiro virtuoso não tem (interesse por) bens; o verdadeiramente grande ignora-se a si mesmo. "Eis o mais alto grau de auto disciplina."

- "Mas como, então", indagou o Espírito do Rio, "surgem as distinções entre o alto e o baixo, do grande e do pequeno no aspecto material e imaterial das coisas?"

- "Do ponto de vista de Tao", replicou o Espírito do Oceano, há distinção do alto e do baixo. Do ponto de vista do indivíduo cada qual se coloca no ponto alto e coloca os outros baixo. Do ponto de vista vulgar, alto e baixo (honras e desonras) são coisas conferidas pelos outros.

- "Quanto às distinções, se dizemos que uma coisa é grande ou pequena pelo seu próprio padrão de grandeza e pequenez, então, não há nada em toda a criação que não seja grande, nem nada que não passa de uma semente de joio, e o fio de um cabelo é (tão grande 'como) uma montanha - eis a expressão de relatividade (65).

- "Quanto à função, se dizemos que algo existe ou não existe, por seu próprio padrão de existência ou não-existência, então não há nada que não exista, nada que não pereça na existência. Se sabemos que leste e oeste são sinônimos e, contudo, são termos necessários, em relação um ao outro, então, tais funções (relativas) podem ser determinadas.

- "Quanto aos desejos ou interesses do homem, se dizemos que qualquer coisa é boa ou má porque é ou boa ou má segundo nossos padrões individuais (sujeição), então não há nada que não seja bom e nada que não seja mau. Se sabemos que Yao e Chieh consideram-se cada qual como bons e consideram o outro mau, então a (direção de) seus interesses se torna patente.

- "Há muito Yao e Shun abdicaram (em favor de sucessores dignos) e a ordem foi mantida, ao passo que Kuei (Príncipe de Yen) abdicou (a favor de Tsechin) e este falhou. Tang e Wu obtiveram o·império por meio de luta, ao passo que lutando, Po Kung o perdeu. Daí se pode ver que o valor da abdicação ou da luta, de agir como Yao ou como Chieh, varia segundo o tempo, e não pode ser considerado como um princípio constante".

- "Os troncos grossos de madeira com uma cabeça de carneiro, em ferro, na ponta, podiam pôr abaixo uma muralha, mas não podiam reparar uma brecha. As coisas diferentes têm aplicações diferentes. Ch'chi e Hauliu (cavalos famosos) podiam viajar 1 .000 li num dia, mas para caçar ratos não chegavam aos pés de um gato do mato. Os animais diferentes possuem diferentes aptidões. Uma coruja pode pegar pulgas à noite e ver o fio de um cabelo, porém, se sair à luz do dia, pode abrir bem os olhos e nem assim verá uma montanha. Criaturas diferentes são diferentemente constituídas.

- "Assim, os que dizem que deve haver o direito sem seu correlato, errado; ou um bom governo sem seu correlato, mau governo, não apreendem os grandes princípios do universo, nem a natureza de toda a criação. Pode-se perfeitamente falar da existência do Céu sem falar na da Terra, ou do principio negativo sem o positivo, o que é evidentemente possível. No entanto continuam a discutir isso sem parar; tais pessoas devem ser ou loucos ou patifes".

- "Os governantes abdicaram sob condições diferentes e as Três Dinastias sucederam-se uma a outra sob condições diferentes. Os que vêm no tempo indevido e vão contra a maré são chamados usurpadores. Os que vêm no tempo devido e segunda sua época são chamados defensores do Direito. Conserve sua paz, Tio Rio. Como você pode saber as distinções de alto e baixo e das casas dos grandes e dos pequenos?"

- "Nesse caso", replicou o Espírito do Rio, "o que devo fazer acerca da recusa e da aceitação, do seguimento e do abandono (cursos de ação)?"

- "Do ponto de vista de Tao," disse o Espírito do Oceano, (66) como podemos chamar isso de alto e aquilo de baixo? Pois há (o processo de) reverter a evolução (unir opostos). Seguir um curso absoluto, envolveria grande separação de Tao. Qual o maior? Qual o menor? Fique grato à dádiva. Seguir uma opinião parcial é divergir de Tao. Seja exaltado, como o governante de um Estado cuja administração é imparcial. Fique à vontade, como a Deidade da Terra, cuja distribuição é imparcial. Seja expansivo, como as pontas de um compasso, ilimitado sem um limite. Compreenda toda a criação e ninguém será mais obrigado ou auxiliado do que outro. Eis o que é ser sem inclinação. E todas as coisas sendo iguais, como alguém afirmará que isso é longo e aquilo é curto? Tao não tem começo nem fim. As coisas materiais nascem e morrem, e não se tem fé em seu desenvolvimento. O vazio e o cheio alternam-se e suas relações não são fixas. Os anos que se passaram não podem voltar; o tempo não pode parar. A sucessão de crescimento e declínio, de aumento e diminuição, anda num ciclo, cada fim tornando-se um novo começo. Nesse sentido, apenas podemos discutir os caminhos da verdade e os princípios do universo. A vida das coisas passa como um impetuoso cavalo a galope, transformando-se a cada volta, cada hora. O que deve alguém fazer, ou o que não deve fazer? Deixe (os ciclos de) as transformações passarem por si mesmas!"

- "Nesse caso," disse o Espírito do Rio, "qual é o valor de Tao?"

- "Os que compreendem Tao," retrucou o Espírito do Oceano, "devem necessariamente apreender os princípios eternos e os que apreendem os princípios eternos devem compreender sua aplicação. Os que compreendem sua aplicação não sofrem injúria das coisas materiais.

- "O homem de virtude perfeita não pode ser queimado pelo fogo, nem afogado pela água, nem é ferido pelo frio do inverno ou o calor do verão, nem despedaçado pelas aves ou feras. Não porque faça pouco disso; mas porque discrimina entre segurança e perigo, é feliz sob circunstâncias prósperas e adversas, indiferentemente, e cauteloso na escolha de cão, de modo que ninguém pode fazer-lhe mal.

- "Portanto tem sido dito que o Céu (o natural) mora dentro, o homem (artificial) fora. A virtude habita no natural. A ciência da ação do natural e do artificial tem sua base no natural, seu destino na virtude. Assim, seja movendo-se para diante ou para trás, seja condescendendo ou asseverando, há sempre uma reversão para o essencial e para o derradeiro".

- "O que quer dizer", indagou o Espírito do Rio, "por natural e por artificial?"

- "Cavalos e bois", retrucou o Espírito do Oceano, "têm quatro patas. É' o natural. Ponha um cabresto na cabeça do cavalo, um cordel atravessando o focinho de um bezerro. É o artificial.

- "Portanto tem sido dito, não deixe o artificial destruir o natural; não deixe a vontade destruir o destino; não deixe a virtude ser sacrificada pela fama. Observe cuidadosamente esses preceitos, sem uma falha, e desse modo reverterá à Verdade".



O kuei (67) inveja a centopéia, a centopéia inveja a cobra; a cobra inveja o vento; o vento inveja os olhos e os olhos invejavam a mente. Disse o kuei à centopéia. - "Eu salto de um lado para outro numa perna só, mas não lá muito bem. Como consegue dirigir todas as pernas que tem?"

- "Eu não dirijo," replicou a centopéia. Já viu a saliva? Quando é expelida, as gotas grandes são do tamanho de pérolas e as pequenas lembram as gotículas da neblina. Caem ao acaso, em numero incontável. Desse mesmo modo move-se o meu mecanismo natural, sem que eu saiba como fazer para movê-lo".

A centopéia disse à cobra. - "Com todas as minhas pernas, não me movo tão depressa quanto você sem nenhuma. Como pode ser isso?"

- "O mecanismo natural de cada um," respondeu a cobra, "não é coisa que se possa mudar. Que me adiantariam as pernas?"

A cobra disse ao vento - "Eu caminho movimentando a espinha dorsal, tal como se tivesse pernas. Ora, você que parece não ter forma vem, assim mesmo, zunindo lá do Mar Norte para deitar as coisas por terra lá no Mar Sul. Como o faz?"

- "É verdade", replicou o vento, "que eu faço o que você diz. Ninguém é capaz de exceder-me. Posso despedaçar árvores enormes e destruir grandes edifícios. Só a mim foi dado esse poder. Entre as menores derrotas que infligi, venci a grande vitória (68). E vencer uma grande vitória é poder dado apenas aos Sábios".

***

Quando Confúcio visitou K'uang, os homens de Sung o cercaram. Apesar disso, ele prosseguiu sem parar, cantando acompanhado por sua guitarra.

- "Como se explica, Mestre", indagou Tselu, "que esteja tão alegre?"

- "Venha cá," replicou Confúcio, "e eu lhe direi. Durante muito tempo não quis admitir processos, mas em vão. O Destino está contra nós. Durante muito tempo procurei o sucesso, mas em vão. Ainda não chegou a hora. Nos dias de Yao e Shun, não havia nenhum homem, pelo império todo, que fosse um fracassado, embora isso não se devesse à sua habilidade. Nos dias de Chieh e Chou não havia nenhum homem por todo o império, que fosse um sucesso, embora isso não fosse devido à sua estupidez. Eram as circunstâncias as culpadas.

- "Viajar por água sem medo de serpentes marinhas e dragões - eis a coragem do pescador. Viajar por terra sem medo dos búfalos selvagens e dos tigres - eis a coragem dos caçadores. Quando as espadas brilhantes se cruzam, olhar a morte como se olha a vida - eis a coragem do guerreiro. Saber que o fracasso é o destino e que o sucesso é a oportunidade e continuar sem receio algum em tempos de grandes perigos - eis a coragem do Sábio. Pare de zunir, Yu! Meu destino já foi determinado pelo céu".

Pouco tempo depois, o capitão das tropas veio e pediu desculpas dizendo - "Pensamos que você fosse Yang Nu; foi por isso que o cercamos. Descobrimos que nos tínhamos enganado. Por conseguinte, ele se desculpou e retirou-se".

***

Kungsun Lung (69) disse a Mou de Wei - "Quando eu era jovem, estudava os ensinamentos dos mais velhos. Quando cresci, compreendi a moral da caridade e do dever. Aprendi a nivelar as similaridades e as diferenças, a confundir argumentos sobre "dificuldade" e "brancura", a afirmar o que os outros negam, e justificar o que outros discutem. Conquistei a sabedoria de todos os filósofos, e dominei os argumentos de todos os povos. Creio que, na verdade, compreendo tudo. Porém, agora, depois de ouvir Chuangtse, estou perdido de admiração. Não sei se é pela argumentação ou pelos conhecimentos que eu não me igualo a ele. Não posso mais abrir minha boca. Posso pedir-lhe que me desvende esse segredo?"

***

O Príncipe Mou recostou-se na mesa e suspirou. Depois ergueu os olhos para os céus e sorrindo disse - "Nunca ouviu falar do sapo na fontezinha? O sapo disse à tartaruga do Mar Oriental - "Que vida boa a minha! Pulo até a ribanceira que cerca a fonte e vou descansar no buraco de alguns tijolos. Nadando, flutuo sobre os sovacos, pondo meu queixo justamente fora d'água. Mergulhando na lama, enterro meus pés até as curvas e nenhum dos mariscos, caranguejos ou rãs que vejo ao meu redor, conseguem fazer o mesmo. Além disso, morar em tal charco sozinho e possuir o recanto da nascente - ser feliz como ninguém mais pode sê-lo. Por que não vem visitar-me?"

- Ora, antes que a tartaruga do Mar Oriental tivesse descansado no chão a perna esquerda, o joelho direito já tinha se enterrado profundamente na lama e ela o retirou depressa, recuando e pedindo desculpas. Contou depois ao sapo muita coisa sobre o mar, dizendo - "Mil li não dariam para medir sua largura. nem mil braças darão para medir-lhe a profundidade. Nos dias do Grande Yu havia nove anos de cheia, em dez: porém isso nada acrescentava a ele. Nos dias de Tang, havia sete anos de seca, em oito; porém isso não fazia com que suas praias recuassem. Não ser atingido pelo perpassar do tempo e nem sofrer pelo aumento ou pela diminuição d'água - tal é a grande felicidade do Mar Oriental". Ante essa narração, o sapo da fonte ficou profundamente surpreso e sentiu-se muito pequeno, como alguém que se tivesse perdido.

- "Pois aquele cujo saber não aprecia as doçuras da verdade e não procura compreender Changtse, é como um mosquito tentando carregar nas costas uma montanha, ou um inseto querendo atravessar um rio a nado. Naturalmente que nada conseguirá. Além disso, aquele cujo saber não chega aos ensinamentos mais sutis, mas que se satisfaz com sucessos passageiros - não se parece com o sapo da fonte?".

- "Chungtse está agora subindo para alcançar o alto do céu, tendo partido desse reino que fica na terra. Para ele não há mais norte nem sul, subtilmente desapareceram os quatro pontos, mergulhados no imensurável. Para ele não há mais leste ou oeste: partindo do Desconhecido Místico, volta para a Grande Unidade. E, contudo, você acha que vai encontrar sua verdade por meio de perguntas grosseiras e de argumentos! É o mesmo que olhar o céu através um tubo; ou apontar para a terra com uma sovela. Não acha isso ser mesquinho?"

- Nunca ouviu contar como um jovem de Shouling foi estudar determinado modo de andar em Hantan? (70) Antes de poder aprender o modo de andar de Hantan, ele se esqueceu o seu modo de nadar natural e voltou, para essa rastejando nos quatro (pés). Se você não se for agora, esquecerá o que tem e perderá seu próprio saber profissional".

O queixo de Kungsun Lung ficou pendido a língua grudou-se à abóbada palatina e ele desapareceu.

Chuangtse estava pescando no Rio P'u quando o Príncipe de Ch'u mandou que dois altos oficiais o fossem ver e disse - "Nosso príncipe deseja encarregá-lo da administração do Estado Ch'u".

Chuangtse continuou a pescar sem virar a cabeça e disse - "Ouvi dizer que em Ch'u há uma tartaruga sagrada que morreu quando tinha três mil anos de idade. O príncipe conserva essa tartaruga cuidadosamente fechada numa arca no templo de seus ancestrais. Ora, essa tartaruga preferiria antes estar morta e ter seus restos venerados, ou preferiria estar viva e abanando o rabo na lama?"

- "Preferiria estar viva," replicaram os dois oficiais, "e abanando o rabo na lama"

- "pois então saiam daqui", disse Chuangtse, "também prefiro abanar minha cauda na lama".

Hueítse era Primeiro Ministro no Estado Liang e Chuangtse estava a caminho para ir vê-lo.

Alguém observou - "Chuangtse veio. Ele quer ser ministro em seu lugar".

Por isso Hueitse ficou com medo e mandou procurá-lo pelo país todo durante três dias e três noites.

Depois Chuangtse foi vê-lo e disse - "No sul há uma ave. É uma espécie de fênix. Conhece-a? Quando parte do Mar do Sul para o Mar do Norte não pára senão para pousar na árvore wu-t'ung. Nada come além do fruto do bambu e nada bebe senão a mais pura água das nascentes. Uma coruja que estava de posse da carcaça podre de um rato, olhou para cima quando a fênix voava e piou. Não esteve o senhor piando à minha procura por todo o reino de Liang?"

Chuangtse e Heitse passeavam sem destino na ponte que fica sobre o Hao quando o primeiro observou - "Veja como os peixinhos nadam! Nisso consiste a felicidade do peixe".

- "Você não é um peixe", interrompeu-o Hueitse, "como então pode saber em que consiste a felicidade de um peixe?"

- "E você não sou eu", volveu Chuangtse, "como pode então saber que eu não sei?"

- "Se eu, não sendo você, não posso saber o que sabe", argumentou Hueitse, "segue-se que você, não sendo um peixe não pode saber em que consiste a felicidade de um peixe".

- "Voltemos à nossa questão original", declarou Chuangtse. "Perguntou-me como sabia qual a felicidade de um peixe. Só essa pergunta prova que você sabia que eu sabia. Sei-o (pelo que sinto) sobre esta ponte".

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(1) É considerado como tendo vivido 800 anos.

(2) 1783 a.C.

(3) Filósofo sobre cuja vida nada se sabe. O livro Liehtse é considerado uma compilação posterior.

(4) O vento.

(5) 2357 a.C.

(6) Imperadores prudentes.

(7) Um sofista e amigo de Chuangtse que várias vezes sustentou discussões com ele.

(8) Agitações da alma (música do Céu) comparada com as agitações da floresta (música da Terra).

(9) Literalmente "verdadeiro senhor".

(10) Shih e fei significam julgamentos morais gerais e distinções mentais: "direito" e "errado", "verdadeiro" e "falso", "ser e não ser", "afirmativo" e "negativo", bem como "fazer a justiça" a "condenar", "afirmar" e "negar".

(11) Os seguidores de Motse eram poderosos rivais dos confucianistas nos tempos de Chuangtse. Veja as seleções de Motse.

(12) O significado das duas sentenças torna-se claro pela linha abaixo: "Porém se nós pusermos as diferentes categorias numa só, então as diferenças de categorias cessam de existir".

(13) Ch'eng e k'uei, literalmente - "completo e "deficiente". "Integridade" refere-se à unidade intacta de Tao. Nas frases seguintes ch' eng é usada no sentido de "sucesso". É explicado pelos comentadores que "integridade" de música existe apenas no silêncio e que mal é ferida uma nota, as outras a mantêm. O mesmo se dá com os argumentos: quando argumentamos, necessariamente partimos a verdade ao frisar certos aspectos dela.

(14) Ver Laotse, Ch. 42.

(15) Ver Laotse, Ch. 5.

(16) Ver Laotse, Ch. 58.

(17) Literalmente - No "Palácio Celeste".

(18) Nome pessoal de Chuangtse, "tse" sendo o equivalente de "Mestre".

(19) Idéia importante que ocorre freqüentemente a Chuangtse; todas as coisas são defluxo constante e se transformam, mas não passam de aspectos diferentes de uma única.

(20) o melhor discípulo de Confúcio.

(21) Literalmente: Considerado como filhos do Céu.

(22) A primeira parte desse cântico acha-se nos "Analectos".

(23) Esse capítulo trata inteiramente de deformidades - uma observação literária para frisar o contraste do homem interior com o exterior.

(24) Bem conhecido personagem histórico, ministro modelo que é referido nos analectos.

(25) Literalmente: "O exterior do corpo e dos ossos".

(26) Hueitse várias vezes discute a natureza dos atributos, como a "dificuldade" e a "brancura" dos objetos.

(29) Imperador mítico (2852 a.C.) a quem se atribui a descoberta dos princípios de mutação de Yin e Yang.

(30) Com cabeça de homem, mas com corpo de besta.

(31) Espírito do rio.

(32) Um Deus montanhês.

(33) Um governante meio mítico que regeu 2698-2597 a.C.

(34) Um governante semi - mítico que regeu 2514-2437 a.C., pouco antes do imperador Yao.

(35) Um Deus aquático com rosto humano e corpo de ave.

(36) Um monarca da Dinastia Shang, 1324-1266 a.C.

(37) Espada famosa.

(38) Nome pessoal de Confúcio.

(39) Huang- chung e ta- lü são os padrões de diapasão.

(40)Tseng Ts'an e Shih Yü, discípulos de Confúcio.

(41) Yang chu e Motse (Mo Ti).

(42) Começando com esta frase, há uma frisante mudança no estilo e no vocabulário nesta parte do capítulo.

(43) Porque se recusou a servir a uma nova dinastia.

(44) Um governante mítico.

(45) 481 a.C.

(46) Há um anacronismo aqui, pois Chuangtse viveu apenas para ver a nona geração de T'iens. Finalmente o número "doze" deve ter sido copiado errado por um dos escribas posteriores. Essa prova não basta para anular o capítulo inteiro como alguns "críticos textuais" querem.

(47) Referência à história. Os estados de Lu e Chao apresentaram, ambos, vinho ao rei Ch'u. Devido à velhacaria de um servo, os frascos foram trocados e Chao foi censurado por apresentar vinho ruim e sua cidade Hantan foi sitiada.

(48) Veja Laotse, Oh. 86.

(49) Veja Laotse, Oh. 19.

(50) Veja Laotse, Oh. 45.

(51) Tsen Tsan e Shih Yü, discípulos de Confúcio.

(52) Hsüantung, veja Laotse, Ch. 1.

(53) Todos antigos governadores legendários.

(54) Cf. Laotse, Ch. 80.

(55) Veja Laotse, Ch. 18.

(56) Laotse, Tan sendo um dos nomes pessoais pelo qual era conhecido Laotse (Li Tan, ou Li Ehr). "Lao" significa "velho", ao passo que "Li" é nome de família.

(57) os fundadores das Três Dinastias, Hsia, Shang e Chou (2205-222 a.C.).

(58) Sinal para ataque.

(59) Literalmente "Céu".

(60) Yin, yang, vento, chuva, luz e trevas.

(61) Aqui a Grande Nebulosa é tratada como "Céu".

(62) Esse capítulo desenvolve as idéias do capítulo "Igualando todas as Coisas "e contém o importante conceito filosófico de relatividade.

(63) Weilu, um buraco mítico que fica no fundo ou no fim do oceano.

(64) Governadores míticos antes dos Três Reis.

(65) Literalmente - "igualando os títulos ou distinções".

(66) Daí em diante até o fim deste parágrafo, a maioria das passagens é rimada.

(67) K'uei um animal fantástico com uma perna só.

(68) Agora essa frase é um slogan usado na China na guerra contra o Japão.

(69) Um neomotseanista (da escola sofista) que viveu depois de Chuangtse. Esse trecho deve ter sido acrescentado pelos discípulos, como é fácil ver pelas três histórias a respeito de Chuangtse que se seguem.

(70) Capital de Chao.